São Paulo, segunda-feira, 21 de outubro de 2002

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"O PRINCÍPIO DA INCERTEZA"

Como em "A Carta", diretor português Manoel de Oliveira explora a questão do tempo

Produção romanesca relativiza o destino

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"O Princípio da Incerteza" chama a atenção, em primeiro lugar, pelo romanesco da situação: Camila, jovem de família arruinada pelo jogo, casa com um rapaz rico de que não gosta, Antonio (e vice-versa), em detrimento do filho de Celsa, a criada, de quem gosta (e vice-versa).
Sucede que Antonio tem uma amante, Vanessa, dona de bordel, que praticamente vai fazer parte da família. Camila, a sonsa, se pegará com Joana d'Arc, a cujas virtudes recorrerá na tentativa de sobreviver às muitas adversidades que o destino lhe reservou.
O resumo é resumido e não dá conta das muitas nuances dessa ficção que, embora contemporânea, parece de outro século.
Mas ele nos introduz em algo constante na obra de Oliveira: a relação com o tempo. Quem se lembra de "A Carta" sabe do que se trata: ali, Oliveira acoplou um romance do século 18 ao século 20, ambos em sua literalidade.
Em Oliveira o tempo flui como um rio. Mas o que são as águas de um rio? Sempre outras ou sempre as mesmas? Ou ambos? Nas primeiras imagens é difícil evitar a pergunta: em que tempo decorre essa história? Quase tudo remete a uma reconstituição de época (embora uma época indefinida).
Quase, não tudo. A rigor, temos um passado que recobre o presente, como se a tradição relutasse em aceitar o correr do tempo. Dessa "velha maneira" fazem parte não só a igrejinha solitária ou certo mobiliário, como a terrível perversidade que os personagens não raro manifestam. Simultaneamente, esse passado pode ser recoberto pelo presente: a imagem de uma piscina, o bordel, são sinais claros de modernidade.
As cenas tomadas de um trem parecem estabelecer o elo entre essas duas dimensões e denunciar sua convivência (assim como em "Palavra e Utopia" o ir e vir do navio ligava espacialmente os destinos da colônia e da metrópole).
Não é de estranhar que Oliveira seja tão rejeitado em Portugal: a um país que aspira à modernidade e se representa europeu, o cineasta opõe a permanência de sua especificidade cultural. É provável que faça parte disso a idéia de destino, que Camila alimenta com zelo (assim como a nação portuguesa cultiva a crença no retorno redentor de d. Sebastião).
O fato é que Oliveira, cineasta moderno, opõe ao absoluto e inelutável do destino o relativo da história, que Camila, quase inadvertidamente, representa. Pois, se busca inspiração na fé para superar as adversidades do destino, essa fé se apoia na santa guerreira Joana d'Arc, que em vez de aceitar a verdade da igreja buscou nela inspiração para intervir nos acontecimentos e mudar a história.
É dessa ambiguidade em relação ao tempo e à natureza dos acontecimentos que se nutre, em parte, a grandeza deste filme de título sintomático, pois tudo aqui consiste em vislumbrar a incerteza ali onde tudo parece definitivo, acabado.


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