|
Índice
"O PRINCÍPIO DA INCERTEZA"
Como em "A Carta", diretor português Manoel de Oliveira explora a questão do tempo
Produção romanesca relativiza o destino
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"O Princípio da Incerteza"
chama a atenção, em primeiro lugar, pelo romanesco da
situação: Camila, jovem de família arruinada pelo jogo, casa com
um rapaz rico de que não gosta,
Antonio (e vice-versa), em detrimento do filho de Celsa, a criada,
de quem gosta (e vice-versa).
Sucede que Antonio tem uma
amante, Vanessa, dona de bordel,
que praticamente vai fazer parte
da família. Camila, a sonsa, se pegará com Joana d'Arc, a cujas virtudes recorrerá na tentativa de sobreviver às muitas adversidades
que o destino lhe reservou.
O resumo é resumido e não dá
conta das muitas nuances dessa
ficção que, embora contemporânea, parece de outro século.
Mas ele nos introduz em algo
constante na obra de Oliveira: a
relação com o tempo. Quem se
lembra de "A Carta" sabe do que
se trata: ali, Oliveira acoplou um
romance do século 18 ao século
20, ambos em sua literalidade.
Em Oliveira o tempo flui como
um rio. Mas o que são as águas de
um rio? Sempre outras ou sempre
as mesmas? Ou ambos? Nas primeiras imagens é difícil evitar a
pergunta: em que tempo decorre
essa história? Quase tudo remete a
uma reconstituição de época (embora uma época indefinida).
Quase, não tudo. A rigor, temos
um passado que recobre o presente, como se a tradição relutasse
em aceitar o correr do tempo.
Dessa "velha maneira" fazem parte não só a igrejinha solitária ou
certo mobiliário, como a terrível
perversidade que os personagens
não raro manifestam. Simultaneamente, esse passado pode ser
recoberto pelo presente: a imagem de uma piscina, o bordel, são
sinais claros de modernidade.
As cenas tomadas de um trem
parecem estabelecer o elo entre
essas duas dimensões e denunciar
sua convivência (assim como em
"Palavra e Utopia" o ir e vir do navio ligava espacialmente os destinos da colônia e da metrópole).
Não é de estranhar que Oliveira
seja tão rejeitado em Portugal: a
um país que aspira à modernidade e se representa europeu, o cineasta opõe a permanência de sua
especificidade cultural. É provável
que faça parte disso a idéia de destino, que Camila alimenta com
zelo (assim como a nação portuguesa cultiva a crença no retorno
redentor de d. Sebastião).
O fato é que Oliveira, cineasta
moderno, opõe ao absoluto e inelutável do destino o relativo da
história, que Camila, quase inadvertidamente, representa. Pois, se
busca inspiração na fé para superar as adversidades do destino, essa fé se apoia na santa guerreira
Joana d'Arc, que em vez de aceitar
a verdade da igreja buscou nela
inspiração para intervir nos acontecimentos e mudar a história.
É dessa ambiguidade em relação ao tempo e à natureza dos
acontecimentos que se nutre, em
parte, a grandeza deste filme de título sintomático, pois tudo aqui
consiste em vislumbrar a incerteza ali onde tudo parece definitivo,
acabado.
Avaliação:
Índice
|