São Paulo, domingo, 23 de março de 2008

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Crítica/teatro

"Cymbeline" é conto de fadas em forma de ópera-rock

Espetáculo é dos mais problemáticos e dos menos montados de Shakespeare

Divulgação
Cena de "Cymbeline', espetáculo de Shakespeare que está sendo encenado pela companhia Kneehigh no Teatro Popular do Sesi

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Tragédia e conto de fadas, trash movie e paródia, com o cinismo amargo de uma história em quadrinhos para adultos, "Cymbeline" permanece a mais problemática e menos montada das peças de Shakespeare.
Resumir sua trama leva a uma espécie de antologia de momentos favoritos shakespearianos. Cymbeline é um rei fraco e amargurado que, instigado por uma rainha ambiciosa como Lady Macbeth, manda para o exílio Póstumo, com quem sua filha Imogênia havia casado em segredo, como Julieta. Na Itália, Póstumo encontra Iachmo ("Iaguinho"), que, invejoso de um amor tão puro, convence-o da infidelidade da amada. Seguem-se fantasmas, decapitações, guerras, irmãos perdidos reencontrados, com uma verve barroca que rivaliza com Titus Andronicus.
"Um material perfeito para o Kneehigh", pensou a sua diretora Emma Rice, quando foi desafiada pelo Royal Shakespeare Company a descascar esse abacaxi, três anos atrás, no quadro de uma reavaliação completa das obras de Shakespeare. A companhia, uma "estranha família" na definição do membro fundador Mike Shepherd, foi criada há 25 anos em uma comunidade da Cornualha na qual os celulares não pegam e os palcos são ao ar livre.
Em geral trabalhando com o universo infantil, ampliaram temas e territórios sem perder o olhar ingênuo e anárquico, passando de alternativos ao posto de transgressores oficiais, em uma trajetória análoga ao também britânico Cheek by Jowl (que, curiosamente, também montou um "Cymbeline" no ano passado).
Talvez o fascínio pelo desafio de montar "Cymbeline" venha do fato de que, para compor esse esboço multiforme, uma companhia tenha de usar seu melhor material, expondo a essência de seu trabalho. Visto assim, tendo Shakespeare quase como mero ponto de partida, e a partir de um irônico e inteligente texto de Carl Grose (que está em cena como Póstumo), o Kneehigh montou uma ópera-rock com um corifeu drag queen (o carismático Shepherd, que também faz Cymbeline), uma espantosa gaiola de metal, criada por Michael Vale, que se desdobra em vários territórios, e sobretudo um elenco talentoso e ágil, que parece se multiplicar em cena.
Tirando o pó do velho bardo, a companhia no entanto não o deforma pelo deboche. Aos poucos, no segundo ato, o humor negro vai cedendo a uma melancolia delicada que, quando ninguém mais esperava, torna a trama terna e verossímil. Giulia Innocenti, no papel de Imogênia, tem a façanha de se manter engraçada e comovente, provando que reverência e irreverência estão intimamente ligadas quando o assunto é Shakespeare. Ponto para o British Council, que, trazendo essa montagem para cá, prova estar atento ao que há de melhor nos palcos ingleses.


CYMBELINE
Quando:
ter. a sex., 20h; sáb., 16h e 20h; dom., às 17h; até 30/3
Onde: Centro Cultural Fiesp - Teatro Popular do Sesi (av. Paulista, 1.313, Bela Vista, tel. 3146-7405)
Quanto: R$ 5 (ter. a qui. e dom., grátis)
Avaliação: ótimo


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