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MÚSICA ERUDITA
Concerto da mezzo-soprano Luciana Bueno, com flautista Ricardo Kanji, encerra temporada no CCBB
Fúrias e ódios barrocos em "Quatro Pontos Cardeais"
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Amor me traz de volta a
seus terrores." Quem canta é Medéia, na seção mais delicada de uma cantata de Clérambault (1676-1749). E quem cantou Medéia foi Luciana Bueno, encarnando paixões barrocas para fechar a temporada dos "Quatro
Pontos Cardeais", anteontem no
Centro Cultural Banco do Brasil.
Foram quatro programas, ao
longo do mês, seguindo o cardápio de "afetos": alegria, dor, amor
e ódio. Os afetos se traduzem em
figuras musicais, que os compositores barrocos exploram com virtuosismo. Organizada pela flautista Laura Rónai, a série é um
exemplo do que pode ser feito numa sala como essa. Para falar à
moda antiga: diverte e instrui.
Luciana Bueno já foi Carmen,
foi a mãe de João e Maria, foi Meg
em "Falstaff". Cantar dramas barrocos, em três línguas, a dois metros da platéia, talvez seja mais difícil. A exposição é total. O mínimo que se pode dizer é que ela teve todo mundo na mão desde o
momento em que apareceu. Usa
muito bem as linda mãos, diga-se
de passagem.
Canta em italiano (Monteverdi,
A. Scarlatti) mais à vontade do
que em inglês (Händel, Purcell); e
canta com fantasia em francês.
Fez poucos ornamentos, o que é
sempre melhor do que muitos;
passou, com algum esforço, pelas
cascatas de semicolcheias. A coisa
pega naqueles momentos em que
se deixa tomar pelas fúrias. Nessas horas, baixa uma Maria Callas,
e o rosto da mezzo vira um instrumento de graves que fazem a gente tremer e agudos que fazem a
gente desvairar.
A seu lado estava o flautista Ricardo Kanji, um mestre discreto,
levemente irônico, consciente do
muito de música que faz em qualquer pouco que toque. Entre outras coisas, tocou uma sonata
aberratória de Jakob Friedrich
Kleinknecht (1722-94), que foi
"Kappellmeister" em Bayreuth e
escrevia música experimental, nada genial.
Ao fundo, o flamejante cravista
Nicolau de Figueiredo. Um roqueiro do cravo, estraçalhando
nos arpejos.
Violoncelo (Teresa Cristina Rodrigues), violino (Paulo Henes) e
teorba (Guilherme de Camargo):
um grupo enxuto e animado.
"Quem é culpado não escapa/
Das fúrias de sua própria consciência." Quer dizer: ninguém escapa. Mas terá seus momentos de
exaltação, lembrando que seja das
glórias da música barroca.
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