São Paulo, sábado, 24 de agosto de 2002

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ARTES PLÁSTICAS

Exposição da artista plástica, na galeria Brito Cimino, demonstra interesse analítico pelas convenções

Regina Silveira e as sombras que querem ser luz

TIAGO MESQUITA
CRÍTICO DA FOLHA

Há muito tempo, Regina Silveira imprime elementos gráficos nos mais variados objetos. Marcava, com esses sinais, elipses e silêncio, que mantínhamos recalcados em nosso dia-a-dia.
A peça mais importante de sua exposição em cartaz na galeria Brito Cimino trata da conjugação de uma linguagem mais escultórica com a faceta mais rica de sua produção gráfica: a projeção de sombras. Aparece a nós como o último episódio, por ora, de uma produção significativa. A mostra parece dar conta de várias dimensões dessa produção em que a sombra nunca quis tanto ser luz.
Em trabalhos mais simples, a artista projeta signos da violência e da dominação em louças. Como silhuetas, esses corpos estranhos aderem às superfícies. Desse modo, Regina Silveira associa, de maneira decidida, os instrumentos da civilização e do decoro a objetos relacionados à violência, à repressão e à dominação.
Há um espírito de 68 nessa associação. Uma condenação, mais moral do que política, em que a artista identifica a repressão nos instrumentos de decoro e civilização, condenando a repressão ocidental dos modos como produtora de barbárie, sobretudo num país de alta violência social.
Essa dimensão crítica mais pronunciada, ganha, em outros trabalhos, abrangência e complexidade. Passa a investigar os esquemas perceptivos que, culturalmente, dariam sentido às coisas.
A artista demonstra interesse analítico pelas convenções. Constrói cantos de azulejo, onde projeta silhuetas distorcidas e perspectivadas de cadeiras, como se aquele rastro denotasse um uso social do espaço restritivo e limitador. Essas atribuições a priori poluiriam os modos de olhar, de perceber e de significar as coisas.
Em sua instalação mais recente, a artista retoma ironicamente o engessamento dos esquemas perceptivos. Transporta para o espaço comum as mais elementares formas da geometria espacial: o cubo, o cone, a esfera e o cilindro. Agigantadas, elas se materializam brancas no espaço da galeria. Bem acabadas, parecem reivindicar sua pureza ideal e uma espacialidade neutra, apartada.
Entretanto, em contraste binário com o que existe de tentativa de neutralização das formas, ela carrega nas tintas, e, por trás das formas brancas (tão brancas quanto a galeria e o espaço expositivo moderno), projeta sombras negras, que vão ganhando o entorno da peça e outros elementos arquitetônicos do prédio, como a escada.
As sombras, porém, deixam de ser rastros e vestígios. Tornam-se mais carregadas, mostrando-se como presença física. Olhando de cima, é possível reverter o processo e entender as formas brancas como emanação da mancha preta, como se se desprendessem daquele negrume.
De forma ambígua, as interferências ressaltam tudo o que uma espacialidade estritamente idealizada da perspectiva recusa. Entram aí e são reforçadas as sombras, a estatura física dos elementos, a interpenetração de uma forma na outra e os vínculos entre os volumes e o espaço.
Aí, a artista retorna ao modelo anticonvencional de trabalhos anteriores, agora de modo distinto e mais sensível. No entanto a perspectiva renascentista -ao elaborar idealmente uma espacialidade análoga, mas distinta do real- parece pintar, procurando uma espécie de harmonização que indicaria um mundo melhor, diferente.
No trabalho de Regina Silveira, embora ele guarde uma alta dose de nonsense surrealista -a sombra parece mais palpável do que o próprio corpo dos volumes- esse horizonte desapareceu como possibilidade. Toda tentativa de projetar um espaço além do espaço físico transforma a abertura do espaço numa vertigem da legitimação da arte.
Talvez fosse exagerado imputar tal exclusivismo ao trabalho. Mas aqui, por desilusão ou conformismo, a obra de arte acaba reiterando, ainda que criticamente, as engessadas concepções espaciais e culturais que limitariam nossa ação.
A arte resigna-se, abre mão da constituição do novo. Anuncia a prosa empobrecida do passado. O mundo aparece acinzentado entre a suposta neutralidade do branco e as marcas de fagocitação do preto. Talvez seja a cor de algo que perdeu o interesse, de um gesto que não pode mais se desinibir.


Regina Silveira   
Onde: galeria Brito Cimino (r. Gomes de Carvalho, 842, tel. 3842-0634)
Quando: de ter. a sáb., das 11h às 19h; até 28/9
Quanto: entrada franca




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