São Paulo, sábado, 26 de junho de 2004

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"HISTÓRIAS DE COZINHA"

Filme premiado na última Mostra de Cinema de SP retrata situação surreal de convivência

Norueguês destrói universo de felicidade ideal

JOSIMAR MELO
COLUNISTA DA FOLHA

Quando meus editores pediram que eu fizesse a resenha deste "Histórias de Cozinha", devem ter achado, como eu achei (e você provavelmente também), que seria uma obra em que a gastronomia (ou ao menos a culinária) tivesse algum destaque -coisa que a sinopse do filme também dava a entender.
Erramos todos. "Histórias de Cozinha", que deu ao norueguês Bent Hamer o prêmio de melhor diretor na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, passa-se de fato boa parte do tempo numa cozinha. Mas em que a comida só dá o ar da graça muito episodicamente.
Em compensação, é um filme em que outros ingredientes, os sentimentos humanos -da desconfiança bruta ao amor fraterno, do ciúme cego à rebeldia- se desenrolam todo o tempo, mansamente, num ritmo contido e minimalista, belo.
Tudo isso é mostrado a partir de um enredo bizarro. Nos anos 1950 uma empresa sueca especializada em criar soluções para o conforto do lar resolve pesquisar como se comporta o homem solteiro na cozinha, para então propor um desenho moderno para o cômodo. Uma legião de técnicos parte para a Noruega, a bordo de trailers futuristas, para empreender a pesquisa de campo -que consiste em observar durante dias, em silêncio, cada um dos solteiros selecionados.
É vital para a pesquisa que ambos -pesquisador e pesquisado- jamais se comuniquem, embora o primeiro fique o dia inteiro plantado na cozinha do outro.
A situação, tendendo para o surreal, se desenvolve numa cidadezinha no interior da Noruega. O foco da narrativa repousa sobre o técnico Folke (Tomas Norström), aboletado na cozinha do desconfiado e recalcitrante Isak (Joachim Calmeyer), atores que protagonizam um duelo de interpretações sensíveis. Eles vão viver a dúvida de limitar-se à objetividade do experimento científico de que são parte, ou ceder ao invisível apelo que paira no ar, no sentido de tecerem entre si um fio de calor humano.
O que se desenrola inicialmente como uma batalha muda entre os dois se transforma numa batalha interior de cada um deles -o inconformismo contra a lassidão da ordem, o humanismo contra o utilitarismo.

Contexto histórico
Classificado como comédia, "Histórias de Cozinha" não arranca gargalhadas em nenhum momento: mas provoca sorrisos, mais interiores do que da boca para fora.
A época -a Europa do pós-Segunda Guerra, vitaminada pelo dinheiro do Plano Marshall, no limiar da era do progresso tecnológico- é tão apropriada quanto o cenário gélido em que se passa a história. E a cozinha não deixa também de ser um set sugestivo.
A única refeição que presenciamos prescinde da habilidade e dos equipamentos culinários (são embutidos e enlatados, comidos frios -salsichão, arenque em conserva, queijo, salsicha, mostarda, pão), dentro portanto do contexto do frio pragmatismo comentado pelo filme.
No entanto, a cozinha, palco original do ato de comer junto, simboliza sempre a boa convivência. O que faz dela o local ideal para, a partir de uma pitada de sal, começar a ruir o universo de "felicidade ideal" montada de forma calculista em laboratório.


Histórias de Cozinha
Kitchen Stories
   
Direção: Bent Hamer
Produção: Noruega/Suécia, 2003
Com: Joachim Calmeyer, Bjorn Floberg, Tomas Norström
Onde: em cartaz no Espaço Unibanco



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