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"HISTÓRIAS DE COZINHA"
Filme premiado na última Mostra de Cinema de SP retrata situação surreal de convivência
Norueguês destrói universo de felicidade ideal
JOSIMAR MELO
COLUNISTA DA FOLHA
Quando meus editores pediram que eu fizesse a resenha
deste "Histórias de Cozinha", devem ter achado, como eu achei (e
você provavelmente também),
que seria uma obra em que a gastronomia (ou ao menos a culinária) tivesse algum destaque -coisa que a sinopse do filme também
dava a entender.
Erramos todos. "Histórias de
Cozinha", que deu ao norueguês
Bent Hamer o prêmio de melhor
diretor na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo,
passa-se de fato boa parte do tempo numa cozinha. Mas em que a
comida só dá o ar da graça muito
episodicamente.
Em compensação, é um filme
em que outros ingredientes, os
sentimentos humanos -da desconfiança bruta ao amor fraterno,
do ciúme cego à rebeldia- se desenrolam todo o tempo, mansamente, num ritmo contido e minimalista, belo.
Tudo isso é mostrado a partir de
um enredo bizarro. Nos anos 1950
uma empresa sueca especializada
em criar soluções para o conforto
do lar resolve pesquisar como se
comporta o homem solteiro na
cozinha, para então propor um
desenho moderno para o cômodo. Uma legião de técnicos parte
para a Noruega, a bordo de trailers futuristas, para empreender a
pesquisa de campo -que consiste em observar durante dias, em
silêncio, cada um dos solteiros selecionados.
É vital para a pesquisa que ambos -pesquisador e pesquisado- jamais se comuniquem, embora o primeiro fique o dia inteiro
plantado na cozinha do outro.
A situação, tendendo para o
surreal, se desenvolve numa cidadezinha no interior da Noruega.
O foco da narrativa repousa sobre
o técnico Folke (Tomas Norström), aboletado na cozinha do
desconfiado e recalcitrante Isak
(Joachim Calmeyer), atores que
protagonizam um duelo de interpretações sensíveis. Eles vão viver
a dúvida de limitar-se à objetividade do experimento científico de
que são parte, ou ceder ao invisível apelo que paira no ar, no sentido de tecerem entre si um fio de
calor humano.
O que se desenrola inicialmente
como uma batalha muda entre os
dois se transforma numa batalha
interior de cada um deles -o inconformismo contra a lassidão da
ordem, o humanismo contra o
utilitarismo.
Contexto histórico
Classificado como comédia,
"Histórias de Cozinha" não arranca gargalhadas em nenhum
momento: mas provoca sorrisos,
mais interiores do que da boca
para fora.
A época -a Europa do pós-Segunda Guerra, vitaminada pelo
dinheiro do Plano Marshall, no limiar da era do progresso tecnológico- é tão apropriada quanto o
cenário gélido em que se passa a
história. E a cozinha não deixa
também de ser um set sugestivo.
A única refeição que presenciamos prescinde da habilidade e
dos equipamentos culinários (são
embutidos e enlatados, comidos
frios -salsichão, arenque em
conserva, queijo, salsicha, mostarda, pão), dentro portanto do
contexto do frio pragmatismo comentado pelo filme.
No entanto, a cozinha, palco
original do ato de comer junto,
simboliza sempre a boa convivência. O que faz dela o local ideal para, a partir de uma pitada de sal,
começar a ruir o universo de "felicidade ideal" montada de forma
calculista em laboratório.
Histórias de Cozinha
Kitchen Stories
Direção: Bent Hamer
Produção: Noruega/Suécia, 2003
Com: Joachim Calmeyer, Bjorn Floberg,
Tomas Norström
Onde: em cartaz no Espaço Unibanco
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