São Paulo, Sábado, 26 de Junho de 1999
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TEATRO - CRÍTICAS
"Deus lhe Pague" revive Procópio como clown

NELSON DE SÁ
da Reportagem Local

Décio de Almeida Prado relata com alguma crueldade uma turnê que Procópio Ferreira fez com "Deus lhe Pague", conservando tão-somente as cenas dos dois mendigos. O grande ator estaria no fim, vencido afinal.
Pode ser, pois foram algumas das últimas apresentações de "Deus lhe Pague" com Procópio. Mas também é certo que o melhor de "Deus lhe Pague", o texto de Joracy Camargo, está precisamente na dupla de clowns -do mendigo filósofo, o papel de Procópio, e seu colega e discípulo.
Não chegam a ser diálogos brilhantes, sobretudo quando tratam por filosofia o que não vai além de ingênuo proselitismo. Mas também há passagens de pura representação popular -até com rasgos do modernismo que tanto se quer negar ao dramaturgo, que vinha da experiência do Teatro de Brinquedo, e ao ator, que inspirou "O Rei da Vela", de Oswald de Andrade.
Escorrendo ironia e materialismo, o diálogo dos dois mendigos chega a esboçar um niilismo absurdo, por exemplo: "Não passa ninguém por aqui...". "Em compensação a vida passa..." É possível ver traços dos clowns de "Godot", dos coveiros de "Hamlet", do Gordo e o Magro, na linhagem atemporal da comédia.
É o que se pode ver na remontagem que a filha de Procópio, Bibi Ferreira, produziu para lembrar o centenário do inconteste maior ator brasileiro -apesar das décadas de esforços críticos e históricos de Almeida Prado.
Em relação ao cotidiano do teatro nacional, trata-se de uma superprodução. Os cenários e figurinos se acumulam perdulariamente na encenação "de época", datada de 1932, ano de estréia da peça. Recebem especial atenção as cenas do mendigo enquanto milionário e, em "flashback", quando jovem.
Mas é possível apreciar o melhor de "Deus lhe Pague" na interpretação de Bemvindo Sequeira, o ator que, depois de incontáveis nomes buscados em novelas da Globo, ficou unicamente por seu talento cômico com o papel que foi de Procópio.
Nas cenas do mendigo nas ruas, ele vai distribuindo com tempo perfeito as inúmeras "boutades", a saraivada de frases feitas e chistes que levaram "Deus lhe Pague" a ser considerada a peça de chegada do teatro de tese ao país.
Um pouco oprimidos pelos cenários monumentais de igrejas, os dois mendigos permeiam toda a apresentação, sendo sempre um alívio vê-los em cena, sozinhos, como se a peça voltasse ao que lhe é natural, até mesmo original. Como se o restante, aquilo que o próprio Procópio cortou na citada turnê, não fosse mais que enxerto.
Não que as demais cenas -praticamente duas outras peças diferentes- não tenham seu interesse.
Mas elas se inscrevem, de um lado, na comédia de costumes então dominante, com sua jovem esposa que se casou por dinheiro, seu jovem de família tradicional que faliu, seu velho milionário que manipula os outros dois. Enfim, o triângulo amoroso de alta classe em que ninguém é lá muito respeitável.
De outro lado, na cena em "flashback", o que se vê é um melodrama socialista sobre um jovem operário cuja invenção, um tear revolucionário, é furtada por seu patrão, que ainda o faz ser condenado com uma falsa acusação.
No triângulo amoroso, Adriane Galisteu estréia no palco com inusitada segurança. Sustenta longas falas, até passagens sozinha em cena, projeta voz e se mostra à vontade no humor de duplos sentidos -em que tudo parece auto-referência. Mas no mais das vezes o que faz mesmo é desfilar vestidos lindamente.
Humberto Martins, que faz o jovem falido, tem bons momentos cômicos como um "escada" -carregado de expressões de bestificação- do milionário de Bemvindo Sequeira.
Mas o que importa, não tem jeito, são os dois mendigos, a "filosofia" do velho, os ataques incessantes à miséria e à (falta de) Justiça, a iconoclastia; sobretudo as tiradas, as respostas cortantes. É possível compreender então como, com Procópio, "Deus lhe Pague" chegou perto das 4.000 apresentações.


Avaliação:     


Peça: Deus lhe Pague
Autor: Joracy Camargo
Supervisão: Bibi Ferreira
Direção: Paulo Afonso de Lima
Com: Bemvindo Sequeira, Luis Amorim, Adriane Galisteu e outros
Quando: qui. a sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: teatro Sérgio Cardoso (r. Rui Barbosa, 153, tel. 288-0136)
Quanto: R$ 15 (quinta), R$ 20 (sexta e domingo) e R$ 25 (sábado)


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