São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

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CRÍTICA

Mezzosoprano americana esbanja confiança em programa que tem Rossini, Mozart, Debussy, Fauré e Gonoud

A sustentável leveza de Jennifer Larmore

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Ela teria feito as delícias do professor Allan Bloom. Eternizado pelo romancista Saul Bellow, em seu romance "Ravelstein", o filósofo Bloom (1930-1992) é nosso grande professor de Rossini; e pode-se imaginar como não teria reagido às árias do italiano, cantadas com pragmatismo e malícia, ao mesmo tempo, por Jennifer Larmore, em seu concerto de quinta-feira, no teatro Cultura Artística.
Gioacchino Rossini (1792-1868) deixou para a eternidade um filé, que por si só já nos faria grandes devedores das artes do compositor. É um prato, como se diz, "consistente" -bem diverso das delícias da música, que adota a graça e a inconsistência como estilo do espírito.
A mezzosoprano não é menos consistente e não menos contente nas carnes da música e de si. Quem abriria um concerto com "Eccomi alfine in Babilonia" (da ópera "Semiramide")? E cantando desse jeito? Confiança total, a voz se aquecendo de baixo para cima, mas como se já estivesse noutro mundo, que a gente tem agora o privilégio de espreitar.
Nesse outro mundo, a música sonha com Mozart, de quem ela também cantou o rondó "Non temer, amato bene". Acompanhando a diva, o pianista Antoine Palloc fez da discrição sua maior virtude; mas uma discrição nada neutra, deixando escapar acentos de entendimento e cumplicidade.
Agora o lado menos entusiástico da resenha. Programa careta: o velho modelo, uma seleção de peças destinadas, acima de tudo, a apresentar as virtudes da "cantatrice", exibindo-se em vários estilos, de várias épocas e em várias línguas. Assim, a segunda parte abriu com Debussy, Fauré e Gounod e continuou com Montsalvage e Victor Herbert. Tudo muito bem feito, mas, nesse contexto, sem maior sentido para além do espetáculo. (Que já é o sentido maior!, diria o professor Bloom.)
Um amigo meio chato reclamava, no intervalo, que o programa trouxe apenas os textos originais das canções, sem tradução. Pode ser meio chato, mas aqui estava certo inteiro. Ou será que toda a platéia fala fluentemente italiano, francês, espanhol e inglês? Ou será que as letras não têm relevância? Podem ser meio absurdas, continuava ele, mas a transformação do absurdo em verdade... pelas artes do canto... -não é disso que se trata, afinal?
Miss Larmore não se perturbou. Não é dada à metafísica. Nem ao teatro, insistia o chato, incomodado com a mímica de musical.
Deixa para lá. Numa noite dessas, ninguém tem o direito de ser chato. Foi um concerto brilhante, simpático, honesto, leve, alegre. Com momentos de beleza francesa. E o que teve de bobo a gente desconta logo, com facilidade. Essa cantora e essa música têm crédito de sobra com todos os homens de boa vontade.


Jennifer Larmore     
Programa: Rossini, Mozart e outros
Onde: teatro Cultura Artística (r. Nestor Pestana, 196, tel. 3256 0223).
Quando: hoje e qua., às 21h.
Quanto: de R$ 90 a R$ 180.
Patrocinadores: Bovespa, Votorantim e Telefonica




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