São Paulo, sábado, 26 de setembro de 2009

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Comentário/exposição

Olhar moderno move "Virada Russa"

Exposição sobre vanguardas, com obras de Kandinsky e Maliévitch, entre outros, mostra força da experiência revolucionária

Rafael Hupsel/Folha Imagem
Sala compinturas de Maliévitch na mostra "Virada Russa"

VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Raras são exposições tão fundamentais quanto "Virada Russa - A Vanguarda na Coleção do Museu Estatal Russo de São Petersburgo". Contrariamente a outras que São Paulo recebeu ultimamente e cuja musculatura encontra-se mais na publicidade do que propriamente nas obras, a exposição trazida pelo Centro Cultural Banco do Brasil impressiona pela importância e riqueza.
Nomes maiores da arte do século 20, como Kandinsky, Maliévitch, Tátlin, Rodtchenko e Chagall comparecem com obras maiores, isto ao lado de pintores pouco conhecidos, mas de impressionante qualidade, como Pavel Filónov.
No entanto, mais do que apenas permitir acesso direto a obras que o público brasileiro nunca viu, a exposição serve para nos colocar questões sobre o que ainda está vivo no impulso vanguardista que marcou a arte do século 20. Pois a ideia do envelhecimento definitivo das vanguardas virou uma estranha doxa dominante.
Ela serve atualmente para colocar fora de circulação toda tentativa de insistir na necessidade das obras de arte serem capazes de se constituírem como forma crítica. Forma capaz de nos desacostumar dos modos de organização, de visibilidade e de fascinação que circulam nas esferas da cultura industrial.
Pois quando esta exigência crítica sai de circulação, as obras de arte podem se transformar na mera estetização de linguagens próprias a esferas hiper-fetichizadas da cultura, como a moda, a publicidade, os quadrinhos, a pornografia etc. Sai de cena Maliévitch, entra Jeff Koons.

Realismo socialista
O crítico de arte Pierre Restany um dia afirmou que a força de abstração própria às vanguardas era o sintoma de "artes da evasão e da recusa do mundo, manifestação extrema de uma visão pessimista da condição humana". Os russos desmentem cada uma destas palavras. Primeiro, só uma época histórica onde as possibilidades de reconstrução da "condição humana" era extremamente presente poderia produzir arte como aquela apresentada pelos construtivistas, suprematistas e cubo-futuristas.
Não por outra razão, o impulso criativo vanguardista dará lugar ao neoclassicismo do realismo socialista à medida que as possibilidades de reconstrução social saírem do horizonte. Neste sentido, a decisão de terminar a exposição com algumas pérolas do realismo socialista é extremamente pertinente. Ela nos lembra como toda forma deteriorada de vida tem um estranho amor pelas ruínas estilizadas do neoclassicismo.
Por outro lado, longe de algum tipo de "evasão", o "formalismo" dos russos foi resultado direto de uma certa "subtração" que se transformará em estratégia maior do modernismo. Tratava-se de subtrair tudo o que naturalizara nossas formas de ver e de organizar o visível. O que aparecia ao final desta subtração era o sistema elementar de constituição da representação, que enfim podia ser problematizado.
Assim, a pintura podia se dedicar a discutir o sistema de cores, isto a fim de constituir um espaço no qual nenhuma cor se estabiliza em sua identidade (Kandinsky). Ou ainda, o jogo de linha, curva e plano podia subir à cena para mostrar sua força produtiva (Maliévitch).
Como dirá décadas depois o artista plástico Sol LeWitt, tratava-se de maneiras de retirar a pele das coisas para que suas estruturas pudessem ser desveladas e ganhassem novas dinâmicas. Esta subtração chegará ao impressionante "Quadrado Preto sobre Fundo Branco", em que, como dirá Maliévitch, a pintura podia enfim se aproximar da "experiência de ausência de objeto". Uma ausência que sempre aparece como fundamento para toda verdadeira experiência criadora.
Foi assim que se construiu o olhar moderno. Desta forma, a exposição apresenta o início de algo profundamente inquietante que ainda faz parte de nós mesmos. A inquietação de um novo olhar que animou momentos fundamentais das expectativas disruptivas da arte moderna. Olhar que sempre retorna. Freud costumava dizer que a razão fala baixo, mas nunca se cala.
Retornar a este momento maior da experiência vanguardista, onde revoluções na vida e na arte se encontraram, é uma maneira de lembrar que experiências como estas nunca se calam.

VLADIMIR SAFATLE é professor do departamento de filosofia da USP


VIRADA RUSSA

Quando: de ter. a dom., das 10h às 20h; até 15/11
Onde: CCBB (r. Álvares Penteado, 112, tel. 3113-3651); livre; grátis




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