São Paulo, sábado, 27 de janeiro de 2007

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Crítica/teatro

"Anátema" é bela aula de subversão

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Juliana Galdino testa sua autonomia de vôo. Após sete anos como chamariz do CPT de Antunes Filho, faz um monólogo escrito e dirigido por Roberto Alvim. Evitando traumas pós-separação, tem sempre o cuidado de apresentá-lo como uma segunda etapa da aprendizagem com o mestre, o que denota não só a maturidade da atriz, como do CPT.
E o que se colhe dos ventos semeados por Antunes? Em primeiro lugar, é preciso assinalar que a dupla Galdino/Alvim tem o potencial de duplas consagradas, como a dupla Fernanda D'Umbra/Mario Bortolotto ou Mariana Lima/Enrique Diaz. Substituindo o esquema de produção teatral em torno de um demiurgo e seus seguidores, o que se tem cada vez mais é uma equipe de iguais, que se desafiam e se completam: a geração sem tutores.
Pouco conhecido ainda em São Paulo, Roberto Alvim é um dos motores do importante movimento Nova Dramaturgia Brasileira, do Rio, que, sem pretender ser um celeiro de obras-primas, provou que o experimental tem um público fiel, fundamental para a renovação do mercado. Este "Anátema" é sua 15ª peça e, como indica o autor, a síntese de sua obra.
Ao ver o rosto da mãe morta, uma mulher tem a revelação: a morte liberta da mediocridade da vida. Assim, torna-se "serial killer" por amor ao próximo.
Não é sádica, apesar de matar após o sexo: a violência não a excita, mas vence a repugnância com exaltação cristã, com a sensualidade de Santa Teresa, com a alegria de Blaise Pascal.
Aqui, lágrimas e sangue correm com a urgência de um rio e, apesar da densa poesia do texto arrastar o espectador para um universo arquetípico, a encenação deixa claro que o contexto é o da confissão pública da assassina ou, talvez, o da apresentação de seu caso em um estudo clínico de hospital psiquiátrico.
Assim, a referência do título ao ritual católico de excomunhão, "bem calculado para infundir terror ao criminoso, a fim de conduzi-lo ao arrependimento", é sutilmente ambíguo.
Quem é anatemizado: a mediocridade da vida por parte da assassina ou esta, pela boa consciência do público?
Roberto Alvim mostra que assimilou o legado de Artaud: a crueldade no teatro é, sobretudo, contra si mesmo, e o artista, sacerdote da dúvida, apresenta-se como monstro de feira, para o medo de quem o vê. Seu universo, que beira o melodrama de elegância minimalista do "film noir", é próximo do de Celso Cruz. Aqui, no entanto, não há concessão nenhuma ao deboche "trash" e, às vezes, a ausência do humor enquanto distanciamento leva a um tom um pouco assertivo: uma aula é dada ao público, subversiva sim, mas cheia de si.
Na performance de Juliana Galdino, esta convicção no próprio talento atrapalha também, às vezes. Após anos canalizando a energia torrencial da tragédia grega, demonstrativa de um método radical de Antunes Filho, ela busca uma maior delicadeza para fazer ouvir "o que seu sangue murmura". Sua voz, como um riacho inconstante, apesar de manter uma entonação grave e voluntariamente não-natural, ora se faz quase inaudível no momento de dor, ora sangra represas com energia. Seria preciso um ouvido acurado de crítico musical para acompanhar essa delicada partitura, para assinalar com precisão seus excessos, mas arrisco aqui desejar que, depois de um silêncio no paroxismo da dor, a inspiração ruidosa não roubasse o foco da palavra seguinte.
Mas a elegância do espetáculo é garantida pela marcação precisa, a iluminação marcante e o bom uso de projeções. O Club Noir nasce com maturidade, abrindo com bons ventos novos a temporada.


ANÁTEMA    
Onde: Unidade Provisória do Sesc Avenida Paulista - espaço 10º andar (av. Paulista, 119, Bela Vista, tel. 3179-3700)
Quando: sex. a dom., às 21h; até 11/3
Quanto: de R$ 7,50 a R$ 15


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