São Paulo, sábado, 27 de junho de 2009

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Crítica/teatro

"Memória do Mundo" chega ao centro do universo de Borges

Com recursos mínimos, montagem concilia com habilidade elementos da literatura do autor argentino e do puro teatro

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
O ator João Paulo Lourenzon em cena de monólogo "Memória do Mundo", em cartaz no Viga

LUIZ FERNANDO RAMOS
CRÍTICO DA FOLHA

Uma origem possível do teatro é o momento em que, de um círculo de homens em volta do fogo, alguém se levanta para contar uma história. O espetáculo "Memória do Mundo" evoca esse passo inaugural, ao mesmo tempo em que reflete as possibilidades que a cena contemporânea oferece às combinações do épico e do dramático.
A literatura de Jorge Luiz Borges foi o disparador que levou o ator João Paulo Lorenzon a empreender esse projeto tão pessoal. Sua afinidade com a obra do laureado escritor argentino, particularmente daquela que é considerada sua obra-prima, o livro de contos "O Aleph", levou Lorenzon a desenvolver ele próprio a dramaturgia.
O que poderia ser um detalhe sem importância torna-se uma das principais virtudes da encenação. O ator apresenta-se com um domínio do texto que o livra de afetações estranhas aos conteúdos e remete os espectadores, com um mínimo de recursos, ao cerne do universo borgiano.
É verdade que a simples enunciação da fina prosa de Borges não garantiria por si o êxito de nenhum espetáculo. Foi necessária a colaboração do diretor Élcio Nogueira Seixas, no estabelecimento de uma matéria dramática em que o conto se transmutasse em ação e presença.
A direção cria diversas situações na trajetória de revelação de um personagem etéreo, o escritor à beira da cegueira numa espécie de acerto de contas final com seu passado e com sua Beatriz -amada ao mesmo tempo real, remetendo a "O Aleph", e mítica, evocativa da "Comédia" de Dante.
Esse desenvolvimento percorre regiões do espaço cênico demarcadas, seja pelas paredes transparentes e espelhadas, criadas por Márcia Moon, seja pela oscilação entre a luz cintilante e a densa penumbra, desenhada por Lúcia Chedieck. São bolsões dramáticos que transpõem o texto à cena e operam como antídotos à dispersão dos espectadores. De uma maneira geral, a estratégia do encenador é vitoriosa, o que não quer dizer que a inexistência de uma curva dramática convencional não acarrete uma inevitável distância frente aos fatos narrados.
Vale destacar, no que diz respeito ao autor da adaptação e atuante, que onde ele alcança seu melhor rendimento não é nem no registro natural da conversa ao pé do ouvido da amada remota nem nas expansões líricas que o belo texto de Borges autoriza. Lorenzon atinge uma intensidade verdadeiramente teatral nas partes menos verbalizadas, distantes das palavras cristalinas do escritor, como na apoplexia repetitiva de um quase transe, na sugestão de um orgasmo feminino, ou, ainda, no momento sublime em que encarna o mítico cão Argos, parceiro de Ulisses na "Odisseia" de Homero.
"Memória do Mundo" é um espetáculo que consegue conciliar instâncias que nem sempre se harmonizam. A da pura literatura e a do puro teatro. De fato, constrói-se na busca do tênue equilíbrio entre essas duas dimensões. Como nos contos de Borges, que remetem a lugares e tempos imemoriais, há algo de ancestral nesse encontro do literário e do cênico.


MEMÓRIA DO MUNDO

Avaliação: bom




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