São Paulo, Quarta-feira, 27 de Outubro de 1999
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"MEU MELHOR INIMIGO"
Documentário do diretor alemão não deixa de ser homenagem
Herzog acerta as contas com o gênio maldito de Klaus Kinski

Divulgação
Werner Herzog e Klaus Kinski em cena do documentário alemão "Meu Melhor Inimigo"


INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Às vezes a platéia ri, em "Meu Melhor Inimigo", como se fosse um filme de Buster Keaton. E não sem razão.
O sujeito sério, impassível no centro da tela, que narra um ataque histérico de Klaus Kinski, é Werner Herzog. Kinski é seu ator preferido, seu "melhor inimigo".
Existe em Kinski, em sua expressão, um desespero único, indizível. No entanto, não há como censurar a quem ri: embora percebamos a extensão e o caráter de sua agonia, somos chamados a rir, como se a situação fosse realmente cômica.

Ameaça de morte
Herzog, como os mais antigos lembram, é um dos principais cineastas da geração dos anos 70 na Alemanha.
Alguns de seus filmes mais admiráveis, como "Aguirre, a Coléra dos Deuses", "Fitzcarraldo" e "Nosferatu", devem muito ao intérprete que foi Kinski, morto em 1991.
Kinski também deve sua carreira cinematográfica basicamente a Herzog. Sem ele, sua filmografia se restringiria a uns tantos quantos faroestes espaguete de quarta categoria.
Algumas histórias entre os dois eram conhecidas. A mais famosa delas sobre o dia em que Kinski resolveu abandonar as filmagens de "Aguirre" e Herzog ameaçou-o de morte.
Não é apenas a revelação dessas histórias que faz o encanto do filme, e sim o encontro de duas formas peculiares de loucura.
Kinski era um inquieto, com um gênio que parecia querer saltar fora do corpo (vale ver, a esse respeito, o depoimento de Claudia Cardinale no filme). Herzog, um contemplativo.
De certa forma, ambos se completavam. Apesar de todos os conflitos, Herzog suportava o ônus de trabalhar com Klaus Kinski, possivelmente o mais egocêntrico ator que já ficou diante de uma câmera. Sabia que seria um pesadelo, mas em troca teria uma interpretação antológica.
São duas maneiras diversas de estar no mundo, embora ambas igualmente românticas.
Kinski tentava perfurar o mistério das coisas com palavras e gestos. Herzog, ao contrário, observava esse mistério calmamente, à espera do momento em que seu segredo se revelaria diante da sua câmera.
Mas ambos trabalham com a idéia de um mundo secreto, marcado pelo mistério.
Nesse sentido, "Meu Melhor Inimigo" funciona sobretudo como uma detida explicação do cinema de Werner Herzog: essa sensação de estranhamento que, em seus melhores momentos, sabe suscitar estranhamento tanto maior quanto costuma existir a partir de coisas aparentemente óbvias.

Acerto de contas
Homenagem a Kinski, o filme certamente é. Mas também é um acerto de contas, no sentido em que Herzog se põe a refletir sobre o amálgama criado a partir de duas personalidades tão diversas, e que resultou em alguns dos melhores momentos do cinema alemão moderno.
E Herzog, que estava um tanto apagado, como que renasce ao evocar essa alma torturada e tortuosa, demente e pura que foi Klaus Kinski.


Avaliação:    

Filme: Meu Melhor Inimigo (Mein Liebster Feind) Direção: Werner Herzog Produção: Alemanha, 1999, 98 min Quando: amanhã, às 15h45, no Espaço Unibanco (r. Augusta, 1.470, tel. 288-6780) Outra exibição na Mostra de Cinema: não há


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