São Paulo, domingo, 27 de outubro de 2002

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26ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

Festival chega à última semana com "Ode a Colônia", de Wim Wenders, e "Dolls", de Takeshi Kitano; confira seleção dos imperdíveis até o encerramento do evento

Reta final

Divulgação
Traudl Junge em cena do documentário "Eu Fui Secretária do Hitler", que é um dos destaques de hoje na programação da Mostra



Destaque de hoje, o documentário "Eu Fui Secretária do Hitler" traz depoimento de funcionária que transcreveu testamento do ditador feito dias antes de sua morte


LÚCIA VALENTIM RODRIGUES
DA REDAÇÃO

No início dos anos 40, a então jovem Traudl Junge queria mais emoção em sua vida, queria se desvencilhar das asas dos pais e encontrar um trabalho. Acabou sendo contratada por um dos homens mais poderosos e cruéis daquele tempo: Adolf Hitler.
Dominada por uma falsa impressão, imaginou estar no centro de informações. Na verdade, estava numa espécie de ponto cego -subtítulo que os diretores austríacos André Heller, 55, e Othmar Schmiderer, 48, usam para focalizar a vida da mulher que se tornou secretária do ditador.
"Na vizinhança de um ditador, ninguém falaria dos crimes que ele cometera. A cinco quilômetros de distância, estariam comentando coisas desse tipo, mas não em sua mesa de chá", diz Heller, por telefone, de sua casa na Itália.
"Eu Fui Secretária do Hitler", exibido hoje, é resultado de uma conversa entre Heller, cuja família, judia, foi dizimada durante o Holocausto, e Junge, que estava do lado oposto na guerra.
No dia do lançamento do documentário, no Festival de Berlim, em fevereiro, no qual foi premiado na seção Panorama, Junge morreu de câncer. "Cinco dias antes, ela havia me dito: "Libertei minha história, agora acho que minha vida vai poder me libertar". Isso resume o filme", afirma o diretor. Leia a seguir os principais trechos da conversa com a Folha.

Folha - Como o sr. encontrou uma antiga secretária de Hitler?
André Heller -
Ela se recusou a falar por 55 anos, porque achou que sua história não era interessante e porque tinha medo de que, se falasse, pensassem que ela fosse uma completa idiota. Chegou a escrever suas memórias em 46, mas nunca ousou publicá-las.

Folha - Como foi o encontro?
Heller -
Uma jornalista amiga minha, Melissa Müller, escreveu um livro sobre Anne Frank e recebeu uma carta de Traudl Junge. Na carta, ela disse: "Eu fui secretária do assassino de Anne Frank". Eu me interessei na hora em conhecê-la. Junge me contou sua história enquanto eu contava a minha para ela, que são exatamente opostas. Meu pai foi um judeu austríaco obrigado a imigrar para fugir do Holocausto. Minha família foi assassinada em campos de concentração. Depois da guerra, meu pai não se perdoava por ter sobrevivido. De certa forma, Junge levanta a mesma questão: "Por que eu sobrevivi?".

Folha - Como ela reagiu depois que o sr. contou sua experiência?
Heller -
Isso criou uma certa confiança entre nós. Estava interessado em saber como uma jovem podia ser tão ingênua, quais os problemas de educar uma criança para ser apolítica e o perigo de deixar os jovens num estado de espírito tão estúpido. E, no início, não pretendia fazer um filme, só queria conhecer a história dela.
Editamos as 12 horas de material e depois ela foi à minha casa -essa é uma parte que também está no filme- e assistiu à fita. Aí perguntei por que não mostrar isso ao público. Ela ficou apreensiva, porque tinha medo de que pudesse ser mal interpretada. Pedi que contasse tudo com sua alma, não fosse diplomática. Depois de meses, concordou em lançá-lo.

Folha - A câmera fica o tempo inteiro focada nela. Vocês não tiveram medo de fazer um filme assim?
Heller -
Foi uma forma purista, sem nada além de uma mulher contando sua história. Você olha para os olhos, para seus lábios e é isso. A história dela tira o fôlego da gente. Os últimos 25 minutos principalmente, que contam os últimos dias de Hitler em seu bunker, é como um monólogo de Shakespeare, é inacreditável.

Folha - Qual o grande atrativo do documentário?
Heller -
Não há nada de sensacional nem inédito dito ali. Apenas ouvimos a história de uma das figuras mais monstruosas e perturbadoras do mundo contada por uma mulher. Ela percebeu pequenas coisas que representavam muito. Por exemplo, Hitler não gostava de flores porque não queria coisas mortas em volta dele -isso vindo do maior assassino de todos os tempos. Quando viajava de trem, fechava as janelas porque não queria ver as cidades bombardeadas -justo o responsável pelos bombardeios. E, quando fala dele como alguém que não conseguia se largar nas mãos de uma mulher, põe fim a 200 livros que discutem sua sexualidade.

Folha - Por que o sr. acha que ela precisava falar após tanto tempo?
Heller -
Não sei. Disse a ela umas 20 vezes antes de começarmos a gravar que ela não podia morrer sem contar sua vida. Para mim, o mais importante é quando ela diz: "Eu amava esse homem, respeitava-o, mas digo que ele era um grande criminoso e descobri que estava totalmente errada".

Folha - O sr. tinha algum roteiro para fazer a entrevista?
Heller -
Nada. Éramos só nós dois conversando. Às vezes, me sentia meio enfeitiçado. De tempos em tempos, tinha de me dizer que aquela era a secretária de Hitler, que ela transcrevera o último testamento do homem que havia arruinado minha família.

Folha - O depoimento dela fez com que o sr. mudasse alguma idéia sobre Hitler?
Heller -
Não, mas acho que muda para quem acredita que ele era um alienígena. Isso é errado. Ele era um ser humano, e isso torna plausível de que aconteça de novo a qualquer momento. Na Áustria, temos novamente elementos neofascistas na sociedade. E também na França e na Holanda. É um perigo que sempre nos ronda.

Folha - Ela amava Hitler?
Heller -
Ela o amou aos 17, 18, 19, 20 anos. E admite isso. Outras pessoas poderiam mentir, mas ela não o fez. É raro encontrar quem diga: "Eu o amava, ele era um assassino, estava errada e aprendi", isso é o mais fascinante do longa.

Folha - Ela se esqueceu de algo?
Heller -
Não, isso foi o que restou para ela. Sua vida acabou de alguma maneira em 1945. Depois disso, viveu apenas uma interminável discussão com seus erros. Não teve nenhum grande amor, ficou deprimida, teve câncer, retirou um dos seios por causa da doença, contou sua história e morreu. Foi como se ela ficasse segurando isso por 55 anos e, quando deu isso ao mundo, não havia mais nada a que se segurar. Ela chegou a me agradecer, por tê-la convencido de que tinha de se perdoar. Aos 80 anos, era a hora do perdão.

Folha - O sr. a perdoou?
Heller -
Não sou da Inquisição. Houve vítimas dos dois lados. Não sou burro a ponto de comparar Junge com alguém que esteve em Auschwitz. Mas Hitler destruiu a vida de meu pai e destruiu a vida dela. Em níveis diferentes, foram duas vidas destruídas.


EU FUI SECRETÁRIA DO HITLER. Direção: André Heller e Othmar Schmiderer. Quando: hoje, às 20h15, no Cineclube DirecTV 1; amanhã, às 19h e às 21h30, no Metrô Santa Cruz; terça, às 13h30, no Cinesesc; quarta, às 19h, no Cinemark Market Place.

Acompanhe pela internet em www.folha.com.br/especial/2002/mostradecinema




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