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São Paulo, sábado, 28 de junho de 2003

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"OTELO"

Folias d'Arte não deixa a responsabilidade pesar apenas nos ombros do protagonista e padece de excesso de criatividade

Montagem estréia com medo de ser feliz

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
Cena do espetáculo "Otelo", texto de Shakespeare encenado pelo grupo Folias d'Arte, com direção de Marco Antônio Rodrigues


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Muitas vezes já foi dito que o verdadeiro protagonista de Romeu e Julieta é a cidade de Verona: mais do que conflito psicológico, Shakespeare estaria preocupado com a dimensão social das histórias que contava. O mesmo princípio se aplicaria à Veneza de Otelo, embora esse enfoque seja bem menos escolhido.
O "Otelo" de Marco Antônio Rodrigues se situa em uma Veneza nova-iorquina. Uma encruzilhada de raças na qual cada um se vira como pode, pois ser um "vencedor" justifica tudo: roubo, sequestro, bajulação.
Em um dinâmico prólogo, a falsa cerimônia em torno da obra de Shakespeare é substituída de cara por uma ginga de história em quadrinhos.
Isso não quer dizer que o texto tenha se tornado um pretexto para as preocupações do grupo. Os eruditos reconhecerão Otelo em todos os seus detalhes, o general negro que tem seu amor puro por Desdêmona envenenado pela inveja de seu alferes Iago.
E não importa muito se o protagonista Aílton Graça deixe transparecer ainda uma falta de agilidade na articulação do texto, já que dá amplas provas de saber o que está falando ao desembainhar sem falsos pudores cada sarcasmo ou vulgaridade do texto, e sobretudo ao fazer seu belo cindre vibrar de paixão e amargura.
Um dos grandes méritos da montagem, aliás, é o de não deixar pesar a responsabilidade de interpretação unicamente nos ombros do protagonista.
Não apenas Iago está muito bem servido pela inteligência de Francisco Brêtas, que não se intimida sequer com a dimensão cômica de seu personagem, como a Desdêmona de Renata Zhaneta faz jus ao título de "bela guerreira" com o qual é saudada por seu amor ao desafiar os costumes sem perder seu pudor.
Bruno Perillo empresta enorme dignidade a Cássio e Flávio Tolezani (Rodrigo) e Nani de Oliveira (Emília) conseguem uma grande empatia com a platéia, numa montagem em que nem mesmo as figurações chegam a ser desperdiçadas.
É pena somente que, no quinto ato, a cenografia, que joga inteligentemente com as convenções elisabetanas, se empolgue com seu potencial inventivo e acabe roubando o foco, assim como na morte de Desdêmona a adaptação, à moda do século 19, acrescente patético ao já carregado tom de melodrama.
Mas não importa. Esses são problemas de um excesso de criatividade, bem melhores que os da redução do conceito estético a um esquema ideológico pré-estabelecido.
É inútil a discussão sobre o que há de brechtiano em Shakespeare ou de shakespeariano em Brecht quando vivemos em um país no qual a transição de poder foi expressa pela discussão sobre o medo de ser feliz -o que poderia também ser o mote dessa montagem de "Otelo".
E é por refletir o Brasil de hoje que o grupo Folias d'Arte cumpre plenamente sua função: a de ser um grupo de teatro popular brasileiro.

Otelo


   
Texto: William Shakespeare
Direção: Marco Antônio Rodrigues
Com: Folias d'Arte
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra, 213, Santa Cecília, região central, tel. 3361-2223)
Quando: qui. e sex., às 20h30; sáb., às 21h; dom., às 19h
Quanto: R$ 20



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