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"OTELO"
Folias d'Arte não deixa a responsabilidade pesar apenas nos ombros do protagonista e padece de excesso de criatividade
Montagem estréia com medo de ser feliz
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
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Cena do espetáculo "Otelo", texto de Shakespeare encenado pelo grupo Folias d'Arte, com direção de Marco Antônio Rodrigues |
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Muitas vezes já foi dito que
o verdadeiro protagonista
de Romeu e Julieta é a cidade de
Verona: mais do que conflito psicológico, Shakespeare estaria
preocupado com a dimensão social das histórias que contava. O
mesmo princípio se aplicaria à
Veneza de Otelo, embora esse enfoque seja bem menos escolhido.
O "Otelo" de Marco Antônio
Rodrigues se situa em uma Veneza nova-iorquina. Uma encruzilhada de raças na qual cada um se
vira como pode, pois ser um
"vencedor" justifica tudo: roubo,
sequestro, bajulação.
Em um dinâmico prólogo, a falsa cerimônia em torno da obra de
Shakespeare é substituída de cara
por uma ginga de história em
quadrinhos.
Isso não quer dizer que o texto
tenha se tornado um pretexto para as preocupações do grupo. Os
eruditos reconhecerão Otelo em
todos os seus detalhes, o general
negro que tem seu amor puro por
Desdêmona envenenado pela inveja de seu alferes Iago.
E não importa muito se o protagonista Aílton Graça deixe transparecer ainda uma falta de agilidade na articulação do texto, já
que dá amplas provas de saber o
que está falando ao desembainhar
sem falsos pudores cada sarcasmo ou vulgaridade do texto, e sobretudo ao fazer seu belo cindre
vibrar de paixão e amargura.
Um dos grandes méritos da
montagem, aliás, é o de não deixar pesar a responsabilidade de
interpretação unicamente nos
ombros do protagonista.
Não apenas Iago está muito
bem servido pela inteligência de
Francisco Brêtas, que não se intimida sequer com a dimensão cômica de seu personagem, como a
Desdêmona de Renata Zhaneta
faz jus ao título de "bela guerreira" com o qual é saudada por seu
amor ao desafiar os costumes sem
perder seu pudor.
Bruno Perillo empresta enorme
dignidade a Cássio e Flávio Tolezani (Rodrigo) e Nani de Oliveira
(Emília) conseguem uma grande
empatia com a platéia, numa
montagem em que nem mesmo
as figurações chegam a ser desperdiçadas.
É pena somente que, no quinto
ato, a cenografia, que joga inteligentemente com as convenções
elisabetanas, se empolgue com
seu potencial inventivo e acabe
roubando o foco, assim como na
morte de Desdêmona a adaptação, à moda do século 19, acrescente patético ao já carregado tom
de melodrama.
Mas não importa. Esses são problemas de um excesso de criatividade, bem melhores que os da redução do conceito estético a um
esquema ideológico pré-estabelecido.
É inútil a discussão sobre o que
há de brechtiano em Shakespeare
ou de shakespeariano em Brecht
quando vivemos em um país no
qual a transição de poder foi expressa pela discussão sobre o medo de ser feliz -o que poderia
também ser o mote dessa montagem de "Otelo".
E é por refletir o Brasil de hoje
que o grupo Folias d'Arte cumpre
plenamente sua função: a de ser
um grupo de teatro popular brasileiro.
Otelo
Texto: William Shakespeare
Direção: Marco Antônio Rodrigues
Com: Folias d'Arte
Onde: Galpão do Folias (r. Ana Cintra,
213, Santa Cecília, região central, tel.
3361-2223)
Quando: qui. e sex., às 20h30; sáb., às
21h; dom., às 19h
Quanto: R$ 20
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