São Paulo, sábado, 28 de agosto de 2004

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ERUDITO/CRÍTICA

Osesp apresenta programa incomum de autores do século 20

Um Villa-Lobos devolvido a si para inventar o Brasil

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Era tanta gente no palco que parecia uma floresta, mais do que uma orquestra, avançando luxuriosamente pelas coxias. Além da Sinfônica completa (incluindo duas harpas, piano, celesta e todo um arsenal de percussão), nada menos que uma banda da Polícia Militar, em farda de gala, coloria de branco e dourado a lateral esquerda da cena, enquanto outra banda, invisível no porão, era anunciada pelo maestro Neschling. Tudo isso para tocar pela primeira vez a edição crítica da "Sinfonia nš 4" de Villa-Lobos (1887-1959), preparada pela própria Osesp e tocada anteontem com fogos de verdadeira estréia.
A "Quarta" é de 1919. É a sinfonia do meio, "A Vitória", numa trilogia composta por Villa-Lobos logo após a Primeira Guerra Mundial; a Osesp deve tocar a nš 3, "A Guerra", em breve; a partitura da nš 5, "A Paz", foi perdida. ("Como alguém pode perder uma sinfonia?", perguntava rindo uma amiga -casada com um compositor que perdeu uma.)
Nem o próprio Villa, decerto, ouviu nada de parecido com as exaltações e mistérios que imantavam a Sala São Paulo na quinta. Texturas multilaminadas, sobreposições de camadas em tempos diferentes, combinações únicas de sons: um maravilhoso delírio, que nos obriga novamente a rever a imagem do compositor -sem patriotada, um dos maiores orquestradores do século passado-, o que significa rever nossa imagem de nós mesmos.
Se o primeiro movimento carrega nos triunfalismos e getulismos, a partir do segundo as coisas vão se desenhando em outra direção. E, se as referências francesas (Debussy acima de tudo) fazem do "Andantino" uma espécie de "Images" à brasileira, dali se mergulha na noite inadjetivável do "Andante", com o solo de corne inglês dobrado pela viola e acompanhado dos sinos. São vastidões para dentro e vastidões para fora, que Neschling regeu com arrojo e apuro.
Que loucura de música, depois, com aquela banda escondida tocando em contraponto com os fragmentos de fanfarra no palco. E que confiança tinha o compositor, para jogar essas impraticáveis forças contra as insuficiências do mundo. Villa-Lobos já era, então, maior que o Brasil; e o Brasil nem tinha se inventado direito, porque tanta coisa o próprio Villa não tinha composto ainda. A maior loucura é pensar que só agora se escuta o que ele nos compôs.
Foi um contraste e tanto com as apuradas e arrojadas delicadezas do "Concerto para Violino" de Kurt Weill (1900-50), que a solista Viviane Hagner interpretou na primeira parte, acompanhada pelo insólito conjunto de sopros, metais, percussão e quatro contrabaixos. Este é o Weill pré-brechtiano, escrevendo com maestria aos 24 anos de idade, num idioma que faz pensar, por um lado, em Berg e, por outro, em Hindemith (com quem, aliás, escreveria uma ópera radiofônica pouco tempo depois).
A parte do violino é assustadora, mas a morenaça alemã tocou os mil motos-perpétuos como se não fossem nada demais. Quer dizer: como se a música fosse tudo, e dedos, arcos, cordas apenas um instrumento natural da expressão. Ovacionada (o que não era tão previsível, tendo em vista o caráter do concerto), voltou e arrasou num bis virtuosístico, tocado como se fosse grande música: a "Paganiniana", de Nathan Milstein. Já era o bastante para sustentar a vida, e o Villa-Lobos nem tinha começado.


Osesp
    
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes, s/nš, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 22 a R$ 70



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