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ERUDITO/CRÍTICA
Osesp apresenta programa incomum de autores do século 20
Um Villa-Lobos devolvido a si para inventar o Brasil
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Era tanta gente no palco que
parecia uma floresta, mais do
que uma orquestra, avançando
luxuriosamente pelas coxias.
Além da Sinfônica completa (incluindo duas harpas, piano, celesta e todo um arsenal de percussão), nada menos que uma banda
da Polícia Militar, em farda de gala, coloria de branco e dourado a
lateral esquerda da cena, enquanto outra banda, invisível no porão, era anunciada pelo maestro
Neschling. Tudo isso para tocar
pela primeira vez a edição crítica
da "Sinfonia nš 4" de Villa-Lobos
(1887-1959), preparada pela própria Osesp e tocada anteontem
com fogos de verdadeira estréia.
A "Quarta" é de 1919. É a sinfonia do meio, "A Vitória", numa
trilogia composta por Villa-Lobos
logo após a Primeira Guerra
Mundial; a Osesp deve tocar a nš
3, "A Guerra", em breve; a partitura da nš 5, "A Paz", foi perdida.
("Como alguém pode perder uma
sinfonia?", perguntava rindo uma
amiga -casada com um compositor que perdeu uma.)
Nem o próprio Villa, decerto,
ouviu nada de parecido com as
exaltações e mistérios que imantavam a Sala São Paulo na quinta.
Texturas multilaminadas, sobreposições de camadas em tempos
diferentes, combinações únicas
de sons: um maravilhoso delírio,
que nos obriga novamente a rever
a imagem do compositor -sem
patriotada, um dos maiores orquestradores do século passado-, o que significa rever nossa
imagem de nós mesmos.
Se o primeiro movimento carrega nos triunfalismos e getulismos,
a partir do segundo as coisas vão
se desenhando em outra direção.
E, se as referências francesas (Debussy acima de tudo) fazem do
"Andantino" uma espécie de
"Images" à brasileira, dali se mergulha na noite inadjetivável do
"Andante", com o solo de corne
inglês dobrado pela viola e acompanhado dos sinos. São vastidões
para dentro e vastidões para fora,
que Neschling regeu com arrojo e
apuro.
Que loucura de música, depois,
com aquela banda escondida tocando em contraponto com os
fragmentos de fanfarra no palco.
E que confiança tinha o compositor, para jogar essas impraticáveis
forças contra as insuficiências do
mundo. Villa-Lobos já era, então,
maior que o Brasil; e o Brasil nem
tinha se inventado direito, porque
tanta coisa o próprio Villa não tinha composto ainda. A maior
loucura é pensar que só agora se
escuta o que ele nos compôs.
Foi um contraste e tanto com as
apuradas e arrojadas delicadezas
do "Concerto para Violino" de
Kurt Weill (1900-50), que a solista
Viviane Hagner interpretou na
primeira parte, acompanhada pelo insólito conjunto de sopros,
metais, percussão e quatro contrabaixos. Este é o Weill pré-brechtiano, escrevendo com
maestria aos 24 anos de idade,
num idioma que faz pensar, por
um lado, em Berg e, por outro, em
Hindemith (com quem, aliás, escreveria uma ópera radiofônica
pouco tempo depois).
A parte do violino é assustadora, mas a morenaça alemã tocou
os mil motos-perpétuos como se
não fossem nada demais. Quer dizer: como se a música fosse tudo,
e dedos, arcos, cordas apenas um
instrumento natural da expressão. Ovacionada (o que não era
tão previsível, tendo em vista o caráter do concerto), voltou e arrasou num bis virtuosístico, tocado
como se fosse grande música: a
"Paganiniana", de Nathan Milstein. Já era o bastante para sustentar a vida, e o Villa-Lobos nem tinha começado.
Osesp
Onde: Sala São Paulo (pça. Júlio Prestes,
s/nš, tel. 3337-5414)
Quando: hoje, às 16h30
Quanto: de R$ 22 a R$ 70
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