São Paulo, quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

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Crítica/teatro/"A Obscena Senhora D"

Texto de Hilda Hilst serve como cartão de visita de uma atriz rara

Suzan Damasceno assume monólogo, no Sesc Consolação, com iluminação precisa, figurino discreto e ausência de trilha

SÉRGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

"Ninguém sairá ileso", escreveu Caio Fernando Abreu sobre "A Obscena Senhora D", de Hilda Hilst (1930-2004).
Poeta do desamparo e do desejo, do sagrado e do cotidiano, como um Joyce nascido em Jaú, Hilst viveu o bastante para ver sua prosa levada ao teatro pela nova geração -mas apenas a última parte de sua obra, iniciada com a "Senhora D", quando declara seu "adeus à literatura séria": curiosamente, a maioria das oito peças que escreveu para teatro permanecem inéditas. Obscena, isto é, que não pode ser levada à cena, a verve de Hilst vem sendo encenada enquanto desafio: como transgredir o bom gosto sem cair no vulgar, como expressar o grotesco sem perder o sublime?
Assim, a triste e terrível viúva D sai do seu vão de escada para subir ao palco em Coimbra (Companhia do Morcego, 2006) ou em Brasília (destaque do "Janeiro de Grandes Espetáculos", com Catarina Accioly, que também a levará ao cinema, contracenando com William Ferreira).

Mínimo de cenário
Na montagem paulistana, sob direção de Donizeti Mazonas e Rosi Campos, Suzan Damasceno assume o texto inteiro sob forma de monólogo, com um mínimo de cenário, façanha permitida àqueles que se prepararam pelo severo crivo do "Prêt-à-Porter", de Antunes Filho. Em sua adaptação, em parceria com Germano Mello, Damasceno se multiplica em personagens secundários, dos vizinhos caipiras ao misterioso pai incestuoso, expressando assim a lúcida esquizofrenia que obcecava Hilst (ela deixou de ter filhos para que ninguém herdasse o mal de seu pai).
O espetáculo mostra claramente sua derivação dos laboratórios antunianos, nos quais o ator-criador é senhor absoluto do espetáculo, criando seu universo unicamente a partir da sua performance, de seus gestos e de suas entonações.
Uma iluminação precisa, um figurino discreto e a ausência de trilha deixam toda a responsabilidade para a atriz, e é belo que seja assim. Damasceno surge como um anjo ao avesso, uma bruxa ridícula e iluminada, louca de uma aldeia que cultua Deus em sua forma mais carnal: o menino-porco.
Assim, nenhum palavrão é concessão, nada pornográfico é apelativo. Todo adereço grotesco é indicado pelo texto e essencial a ele. Um escárnio que não se dissolve em escracho.
Pelo contrário, o angustioso desabafo soa como um ritual escatológico dionisíaco, que a atriz leva com rigor até o desconforto. Em respeito à minúcia da proposta, é preciso notar que a partitura gestual às vezes se sobrecarrega de detalhes, e a monotonia paira sobre o ritmo e o tom: desfaz-se o fascínio da personagem, ofuscada pela admiração pela técnica da atriz.
De todo modo, esta "Senhora D" serve como cartão de visita de uma atriz rara.


A OBSCENA SENHORA D
Quando:
qua. a sex., às 21h (exceto feriados). Até 29/2
Onde: Sesc Consolação (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, região central, tel. 3234-3000)
Quanto: R$ 2,50 a R$ 10
Avaliação: bom


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