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Crítica/erudito
Concerto de Ortiz é ponto alto do Festival de Campos
Pianista baiana apresenta, de Schubert a Villa-Lobos, rede viva de relações musicais
ARTHUR NESTROVSKI
ENVIADO ESPECIAL A CAMPOS DO
JORDÃO
Já no terceiro bis, o semitom abrindo o primeiro
tema de "Alma Brasileira", de Villa-Lobos (1887-1959),
ecoava o semitom do tema da
"Sonata em Lá Menor" de
Schubert (1797-1928), no começo da noite. Foi coincidência; mas não existem coincidências, e fazia todo o sentido para fechar um programa tão
bem tramado como o da pianista Cristina Ortiz, quarta-feira
passada em Campos do Jordão.
Foi assim, por exemplo, que
três "Intermezzi" de Brahms
(1833-97) viraram uma sonata
em três movimentos, como a de
Schubert; e que quatro "Estudos" de Chopin (1810-49) compuseram outra sonata: allegro,
scherzo, adagio, presto.
Também as outras obras,
dois "Impromptus" de Schubert, do op. 90, e duas peças de
Debussy (1862-1918), não estavam juntas por acaso, formando unidades tanto do ponto de
vista tonal quanto temático e
afetivo. No caso de Debussy, isso envolvia ainda uma tácita relação aquática, entre "Reflets
Dans l'Eau" (Reflexos n'Água) e
"L'Isle Joyeuse" (Ilha Alegre),
já que a última foi inspirada
num galante "Embarque para
Citera" -embarque para a ilha
do amor- do pintor setecentista Watteau.
Descrito assim, pode parecer
cerebral. Mas a pianista baiana
não tem nada de fria; e "cerebral" não seria o termo para definir uma rede tão viva de relações musicais. Para os inspirados padrões de Cristina Ortiz,
esse pode não ter sido o concerto mais inspirado; mas estava
longe do contrário e teve vários
momentos de inspiração.
Ela é sempre mais expressiva
nos grandes gestos do que nas
filigranas. E arrebatadora nos
arrebatamentos. É uma artista
do êxtase. Fez ribombar as infinidades do auditório Claudio
Santoro no final do Debussy,
por exemplo, um dos grandes
momentos de plena alegria da
história da música. Depois do
esforço, ficou ali, bufando e sorrindo, sob a chuva de aplausos.
Vale notar que ela tocou num
piano problemático, para dizer
pouco, um Steinway que há
muito deixou de ser um Steinway. A platéia não era das mais
fáceis, com uma alta concentração de colegas, desde o pianista
Jean-Louis Steuermann (brasileiro radicado em Londres,
como Ortiz) até o maestro Roberto Minczuk, diretor do Festival de Campos do Jordão, passando pelas dezenas de alunos.
Cena entrevista durante o
"Impromptu em Sol Bemol" de
Schubert: uma menina bem jovem, a mão direita entrelaçada
com a do namorado, e a mão esquerda no ar, desenhando a linha de notas, com expressão
embevecida. Deve ser bom ter
aulas com Cristina Ortiz.
Para quem gosta de música,
esse julho em São Paulo foi um
deserto molhado. Enquanto isso, nas montanhas de Campos,
brilhava o sol quase toda noite
nas salas de concerto, depois do
calor das aulas. O concerto de
Cristina Ortiz -corajosa, chegada na quarta-feira mesmo,
depois de 72 horas em trânsito- foi um ponto alto nessa última semana de um Festival
que continua dando certo, no
país onde as coisas geralmente
só têm continuidade no erro.
Avaliação: bom
O articulista ARTHUR NESTROVSKI viajou a
convite do festival
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