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MÚSICA ERUDITA
Um Mozart sexy no Municipal
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Estranha idéia do amor:
uma sequência sem fim de simulações e dissimulações, seduções, armadilhas e farsas; jogos
complicados e sofrimentos simples, tudo encantado por uma
música que dá sentido não meramente retórico à malícia e à paixão. É a miraculosa música de
Mozart (1756-91), animando as
"Bodas de Fígaro", que ganha
uma montagem memorável no
Municipal, encenada por José
Possi Neto e regida por Ira Levin.
Vamos falar logo das coisas
boas. A montagem de Possi é um
modelo do muito que se pode fazer com o mínimo. Fundo negro,
três grandes panos suspensos, levemente balançando à esquerda
na sugestiva luz: já é todo o cenário necessário e, ao mesmo tempo, uma alegoria do que há de leve
e misterioso e sexy no libreto de
Da Ponte e na música de Mozart.
Outro exemplo: retângulo azul
ao fundo, ciprestes geométricos
lunares, Barbarina (Gabriela Sanchez) cantando sua cavatina perdida na noite. Outro exemplo ainda: o povo inteiro invadindo o
palco, monocromático, tudo bege
em cena, menos as flores para o
Conde. O efeito de cor é incrível, e
feito de quase nada -um buquê.
Aqui entra um parágrafo só para elogiar a luz de Wagner Freire e
os figurinos setecentistas do mestre Fábio Namatame.
Vamos falar dos ótimos. A começar pela soprano Rosana Lamosa, a dona do show, do começo
ao fim. Todos os solistas -com
destaque óbvio para o Fígaro de
Paulo Szot -estão à vontade em
cena. Mais que isso, estão fazendo
teatro de verdade. A Susanna de
Lamosa vai mais longe: entra para
a companhia das musas e vêm
morar na memória da gente.
Irônica, rápida, infernal, estranhamente verdadeira nas falsidades do "Deh vieni", mais leve e
misteriosa e sexy do que nunca,
levando de roldão o concurso de
ombros, Rosana Lamosa foi um
emblema e tanto do que pode ser
o espírito de Mozart. Seu par segurou a parada com gosto; e o
Conde de Gordon Hawkins foi
lastro para os dois.
Menos brilho para a Condessa
da italiana Rossela Ragatzu, que
não deu sorte anteontem no "Porgi, amor" (depois foi melhorando). A uruguaia Adriana Mastrangelo faz um Cherubino gracioso, e só fica devendo, talvez, algo de menos gracioso. Não dá para citar todos os solistas; mas o nível geral foi tão bom que dá gosto.
Idem, Coral Lírico.
Agora a orquestra. Andavam falando tanto das melhorias, que
era natural esperar muito, das
cordas em particular. Mas os comentários vêm mais da parte da
esperança do que do medo. Falta
muito para a OSM fazer um som
bonito. Levin adotou a propulsão
como princípio da música, o que
se justifica tendo em vista as dificuldades e o tamanho da ópera.
Mas o mínimo que se pode dizer é
que o resultado ainda soa grosseiro para as sutilezas musicais e
amorosas de Mozart.
Estranhas sutilezas, estranho
amor. A bênção final sempre comovente, antes da festa. Foi linda
a salva prateada de fogos, mal entrevista, enquanto a cortina fechava sobre a comédia da paixão.
As Bodas de Fígaro
Quando: hoje, às 20h30
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de
Azevedo, s/nš, centro, tel: 222-8698)
Quanto: de R$ 15 a R$ 100
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