São Paulo, quarta-feira, 30 de outubro de 2002

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MÚSICA ERUDITA

Um Mozart sexy no Municipal

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Estranha idéia do amor: uma sequência sem fim de simulações e dissimulações, seduções, armadilhas e farsas; jogos complicados e sofrimentos simples, tudo encantado por uma música que dá sentido não meramente retórico à malícia e à paixão. É a miraculosa música de Mozart (1756-91), animando as "Bodas de Fígaro", que ganha uma montagem memorável no Municipal, encenada por José Possi Neto e regida por Ira Levin.
Vamos falar logo das coisas boas. A montagem de Possi é um modelo do muito que se pode fazer com o mínimo. Fundo negro, três grandes panos suspensos, levemente balançando à esquerda na sugestiva luz: já é todo o cenário necessário e, ao mesmo tempo, uma alegoria do que há de leve e misterioso e sexy no libreto de Da Ponte e na música de Mozart.
Outro exemplo: retângulo azul ao fundo, ciprestes geométricos lunares, Barbarina (Gabriela Sanchez) cantando sua cavatina perdida na noite. Outro exemplo ainda: o povo inteiro invadindo o palco, monocromático, tudo bege em cena, menos as flores para o Conde. O efeito de cor é incrível, e feito de quase nada -um buquê.
Aqui entra um parágrafo só para elogiar a luz de Wagner Freire e os figurinos setecentistas do mestre Fábio Namatame.
Vamos falar dos ótimos. A começar pela soprano Rosana Lamosa, a dona do show, do começo ao fim. Todos os solistas -com destaque óbvio para o Fígaro de Paulo Szot -estão à vontade em cena. Mais que isso, estão fazendo teatro de verdade. A Susanna de Lamosa vai mais longe: entra para a companhia das musas e vêm morar na memória da gente.
Irônica, rápida, infernal, estranhamente verdadeira nas falsidades do "Deh vieni", mais leve e misteriosa e sexy do que nunca, levando de roldão o concurso de ombros, Rosana Lamosa foi um emblema e tanto do que pode ser o espírito de Mozart. Seu par segurou a parada com gosto; e o Conde de Gordon Hawkins foi lastro para os dois.
Menos brilho para a Condessa da italiana Rossela Ragatzu, que não deu sorte anteontem no "Porgi, amor" (depois foi melhorando). A uruguaia Adriana Mastrangelo faz um Cherubino gracioso, e só fica devendo, talvez, algo de menos gracioso. Não dá para citar todos os solistas; mas o nível geral foi tão bom que dá gosto. Idem, Coral Lírico.
Agora a orquestra. Andavam falando tanto das melhorias, que era natural esperar muito, das cordas em particular. Mas os comentários vêm mais da parte da esperança do que do medo. Falta muito para a OSM fazer um som bonito. Levin adotou a propulsão como princípio da música, o que se justifica tendo em vista as dificuldades e o tamanho da ópera. Mas o mínimo que se pode dizer é que o resultado ainda soa grosseiro para as sutilezas musicais e amorosas de Mozart.
Estranhas sutilezas, estranho amor. A bênção final sempre comovente, antes da festa. Foi linda a salva prateada de fogos, mal entrevista, enquanto a cortina fechava sobre a comédia da paixão.

As Bodas de Fígaro


    Quando: hoje, às 20h30
Onde: Teatro Municipal (pça. Ramos de Azevedo, s/nš, centro, tel: 222-8698)
Quanto: de R$ 15 a R$ 100



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