São Paulo, Terça-feira, 28 de Dezembro de 1999


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Ritual de comer lentilha na passagem de ano chegou ao Brasil com os imigrantes europeus
Lentilhas

Lili Martins/Folha Imagem
Prato de camarão com lentilhas


ROBERTO DE OLIVEIRA
da Reportagem Local

A lentilha não faz parte do cardápio tipicamente brasileiro, mas muitos acreditam que consumi-la na noite de réveillon atrai fartura e boa sorte no novo ano.
Na Itália, há tempos esse ritual tornou-se hábito quase sagrado na passagem do ano, assim como na Espanha e em outros países de língua espanhola.
Provavelmente a crença foi trazida para o Brasil pelos imigrantes italianos, que desembarcaram por aqui no início deste século.
"Entre os italianos existe até um provérbio que diz o seguinte: "Lenticchie a capod'anno franchi tutto l'anno" (Lentilha no Ano Novo, dinheiro o ano inteiro)", afirma a publicitária Silvana Tinelli, uma italiana que não passa uma virada de ano sem comer lentilhas.
"Não é um costume brasileiro. A crença de que consumir lentilha traz sorte no Ano Novo veio com os italianos. Os brasileiros nem sequer comemoravam a passagem de ano no início deste século", diz Consuelo Pondê, historiadora e presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
Segundo o folclorista Mário Souto Maior, 80, da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife (PE), muitos consumidores brasileiros desconhecem a crendice em torno dos supostos benefícios da lentilha e até mesmo o alimento, principalmente no Nordeste.

A saga
Para Gabriel Bolaffi, 65, sociólogo e escritor, que lança no mês que vem o livro "A Saga da Comida", esses tipos de crença costumam surgir de forma aleatória.
Conhecida desde a Antiguidade, a lentilha originou-se na região mediterrânea. De acordo com Bolaffi, foi um dos únicos vegetais encontrados não somente no Oriente Médio e na Europa como também na América Central, em forma selvagem.
"A lentilha era o alimento popular na Suméria, antiga região da baixa Mesopotâmia (Ásia). Também era muito consumida na Roma imperial, que costumava importar do Egito grandes carregamentos", afirma o sociólogo. A lentilha ainda foi sempre consumida em toda a Europa.
No Velho Testamento, há uma passagem na qual Jacó compra a primogenitura do irmão Esaú com um prato de sopa de lentilhas, mas Bolaffi acredita que a menção bíblica não está relacionada à crença popular.

Produção irrisória
Leguminosa cultivada há cerca de 6.000 anos, a lentilha atinge um cozimento mais rápido que o nosso tradicional e popular feijão (cerca de 20 minutos), tem fácil digestão e alto valor nutritivo.
Sua farinha é utilizada no preparo de pratos árabes.
Sorte à parte, o alimento é recomendado pelos nutricionistas. "A saída é buscar proteína de origem vegetal. Além de ser um alimento completo, a lentilha tem fibras, que controlam o colesterol e a glicose sanguínea", diz a professora de nutrição humana Jocelem Mastrodi Salgado, da Esalq/ USP, de Piracicaba (SP).
Apesar de suas qualidades, a lentilha, que não suporta altas temperaturas, não é difundida no Brasil e tampouco cultivada.
Só para ter uma idéia, o governo não dispõe de dados sobre a produção. Sabe-se que ela é restrita ao Sul, principalmente ao Rio Grande do Sul, onde a produção é pequena, limitada à agricultura familiar e ao consumo próprio.
Mas nem sempre a trajetória da lentilha no Brasil foi assim. Warley Nascimento, pesquisador da Embrapa Hortaliças, especialista em sementes, diz que, da década de 20 até a de 50, os imigrantes europeus plantaram muita lentilha nas terras gaúchas.
Contudo surgiram problemas de doenças e houve ainda ausência de cultivares próprios para a região, fatores que fizeram a produção despencar.
A tentativa de difundir essa leguminosa no Brasil não caiu por terra por aí. Em 1984, foi testada na região Centro-Oeste uma variedade oriunda da Argentina, que também não vingou.

Importação
No final da década de 80, as importações brasileiras de lentilhas giravam em torno de 3.000 t (US$ 1,5 milhão). No ano passado, o Brasil importou 11,6 mil t, no valor de US$ 4,4 milhões. O produto vem principalmente do Chile, do Canadá e da Turquia.
Os EUA, assim como o Canadá e a França, conseguem as maiores produtividades do mundo: de 1.200 kg/ha a 1.800 kg/ha, informa o pesquisador da Embrapa.
Entre os maiores consumidores do mundo estão Índia, Síria, Turquia, Espanha e Chile, onde a tradição de comer lentilha na noite de réveillon como sinal de prosperidade se repete.



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