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PERFIL/LULA
Como líder sindical em São Bernardo do Campo (SP), Lula já exibia o perfil conciliador que ensaia levar ao Planalto
ABC do negociador
ARMANDO ANTENORE
DA REPORTAGEM LOCAL
Em julho de 1993, enquanto
concedia uma entrevista autobiográfica, Luiz Inácio Lula da Silva
resgatou da juventude um episódio aparentemente sem importância. Lembrou o caminho que
fazia quando, de bicicleta, se deslocava do ABC para a Vila Carioca, na zona sul de São Paulo. "Eu
não pegava a Estrada das Lágrimas. Pegava a marginal."
Com um olho na sociologia e
outro na psicanálise, a jornalista
Denise Paraná ouviu aquilo e logo
percebeu que ali havia uma metáfora involuntária. O então presidente do PT evitara mesmo a Estrada das Lágrimas -não apenas
durante os passeios juvenis, mas
também em termos simbólicos.
Contrariando a sorte dos milhões
de nordestinos que se vêem sob o
jugo da seca, superou a miséria,
destacou-se num mar de trabalhadores braçais, perdeu a ingenuidade política e alcançou relevo
dentro e fora do país.
O mais extraordinário, porém, é
que logrou tamanha proeza justamente porque insistiu em seguir
percurso muito próprio. Pegou,
sim, uma trilha marginal e chega à
Presidência da República carregando, no mínimo, três peculiaridades: não possui diploma universitário ou patente militar como todos os outros ocupantes do
cargo; nunca desempenhou função no Executivo; tornou-se um
dos principais nomes da esquerda
brasileira sem passar pela formação marxista clássica.
À semelhança dos giros de bicicleta, que começavam no ABC
paulista, a jornada incomum até o
Planalto partiu igualmente daquela região -berço do que, duas
décadas e meia atrás, se convencionou chamar "novo sindicalismo". Denise registrou a metáfora
em "Lula, o Filho do Brasil". A tese de doutorado, que virou livro
há seis anos, está retornando às
lojas por iniciativa da Editora
Fundação Perseu Abramo.
No mesmo estudo, o ex-torneiro mecânico já ressaltava o papel
do ABC em sua trajetória. Falava,
desta vez, às claras, sem figuras de
linguagem: "Sou o fiel resultado
do crescimento de minha categoria. Nem mais, nem menos". Em
agosto de 2002, retomou a idéia:
"Só existo e sou o Lula porque
existiu o ABC". Usou o verbo no
pretérito ("existiu"), mas poderia
tê-lo conservado no presente.
O ABC, de certo modo, ainda
existe. Durante a última campanha eleitoral, Lula serviu-se de estratégias que o notabilizaram nos
tempos de militância operária.
Empregou-as de novo ao longo
da transição e dá mostras de que
pretende levá-las também para o
governo que inaugura hoje.
Entre 1975 e 1980, quando comandou o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo
e Diadema, procurava agir como
um conciliador -um líder que
paira sobre as disputas pessoais,
aproxima-se de pólos contrários,
busca alianças e só decide depois
de ouvir os diferentes lados em
questão. Foi com espírito idêntico
que, antes das eleições de outubro, abraçou o PL e aceitou o
apoio de rivais históricos. É sob tal
filosofia que, vencedor nas urnas,
propõe um pacto social e pede para seus ministros se portarem sem
personalismo. "Nada de "eu faço,
eu quero". Agora, deve prevalecer
a palavra 'nós'", avisa.
Sacola de frutas
Bombeiro ou motorista de jamanta? Criança, Lula pendia entre as duas alternativas toda vez
que se imaginava numa profissão.
O sonho de se tornar metalúrgico
brotou mais tarde, em 1960, e por
razões bem práticas. Tinha, à época, 15 anos.
Filho de lavradores, já deixara o
casebre de barro e madeira no sítio Vargem Comprida, em Caetés,
agreste pernambucano, onde nasceu. Já sacudira durante 13 dias
sobre o caminhão "pau-de-arara"
que o trouxe para o "Sul maravilha". Já vivera na Baixada Santista,
concluíra a quinta série do primeiro grau e exercera diversos
ofícios: vendedor de tapioca e
amendoim, engraxate, office-boy,
auxiliar de tinturaria.
Encontrava-se agora em São
Paulo, na Vila Carioca. Morava
perto da Vemag, uma fábrica de
automóveis, e notou que os metalúrgicos da empresa gozavam "de
regalias fantásticas". Eram benefícios hoje corriqueiros, mas raríssimos na ocasião: recebiam 13º salário e cestas de Natal, usavam
uniforme ("um macacãozinho
azul, bonito") e almoçavam em
refeitórios. Suas mulheres sempre
dispunham de dinheiro para ir à
feira e retornavam com as sacolas
cheias de frutas ("abacaxi, mamão, melancia, laranja").
"Aquilo me fascinava", contou
Lula na entrevista de 1993. Não à
toa, impôs-se a meta de, um dia,
"ganhar a mesma grana que o cara da Vemag". Ainda em 1960, levado para um teste pela mãe (dona Lindu), acabou ingressando na
Parafusos Marte, uma pequena
fábrica do Ipiranga. Simultaneamente, frequentava um curso técnico do Senai (Serviço Nacional
de Aprendizagem Industrial), que
equivalia ao ginásio. Formou-se,
assim, torneiro mecânico.
Os Inácio da Silva, orgulhosos,
tomaram o fato como uma façanha, semelhante à do jovem de
classe média que se gradua numa
faculdade concorrida. Nenhum
dos outros sete filhos de dona Lindu conseguira, até então, nada parecido. Lula passou a receber pouco mais de um salário mínimo e
virou o "cientista" da família.
Em 1964, trocou a Parafusos
Marte pela Metalúrgica Independência, também no Ipiranga. Permaneceu 11 meses ali. Costumava
encarar turnos de 12 horas.
Numa madrugada, o colega que
operava uma prensa cochilou,
deixou escapar o braço da máquina sobre a mão esquerda de Lula e
lhe decepou o dedo mínimo. O
acidente rendeu indenização de
350 mil cruzeiros, quantia que
permitiu a compra de "uns móveis e um terreninho".
Da Independência, Lula migrou
para a Fris-Moldu-Car, novamente no Ipiranga, de onde saiu
logo. Foi despedido porque não
quis trabalhar em um sábado.
Corria o ano de 1965. O país
amargava uma profunda recessão, e Lula enfrentou enormes dificuldades para se recolocar no
mercado. Ficou um semestre à
deriva. Andava dez quilômetros
por dia, de fábrica em fábrica,
procurando ocupação. "Às vezes,
parava no meio do caminho e
chorava pra cacete."
Só arrumou emprego em 1966.
A Villares, de São Bernardo, lhe
abriu as portas. Quando o contrataram, trazia no bolso apenas
uma moeda de 50 centavos.
Cachaça
"Uns pelegos, uns enganadores." No final da década de 60, Lula não media palavras para definir
sindicalistas. Enxergava-os com
péssimos olhos -como, aliás,
boa parte do operariado daquele
período. É que, por se manter excessivamente próximo do Estado,
o sindicalismo de então priorizava as práticas assistenciais. Oferecia colônia de férias, barbeiro, serviços médicos e odontológicos,
mas pouco brigava pelo aumento
de salários ou pela melhora das
condições de trabalho.
De tal maneira que Lula relutou
muitíssimo quando, em 1968, um
de seus irmãos, José Ferreira da
Silva, o Frei Chico, indicou-o para
completar a chapa da situação no
Sindicato dos Metalúrgicos de
São Bernardo e Diadema. Não se
tratava de nenhum cargo importante. Na diretoria, o "rapaz da
Villares" iria ficar com uma mera
suplência.
Soldador, Frei Chico já transitava pelo mundo sindical e queria
que o irmão se politizasse -uma
vez que, àquela altura, o "cientista" interessava-se mesmo por jogar pelada, ver novela e namorar.
Os apelos se mostraram tão incisivos que Lula acabou cedendo.
Tomou posse no dia 24 de abril
de 1969. Um mês depois, casou-se
com a tecelã Maria de Lurdes, que
morreria grávida em 1971, vítima
de uma hepatite mal-diagnosticada. O bebê também não resistiria.
De início, Lula atuava sobretudo dentro da Villares. Capitaneou, por exemplo, o movimento
pela instalação de um restaurante
na empresa. Paralelamente, participava de reuniões com a diretoria do sindicato. "Presenciava os
debates, os conchavos, as divergências. Ia escutando, aprendendo, pegando gosto. Política é como cachaça. Basta um gole e..."
Em 1972, após nova eleição, Lula passou a integrar o quadro efetivo de diretores. Licenciou-se na
Villares e recebeu a tarefa de criar
um departamento que cuidasse
dos assuntos relativos à previdência social. Para implantá-lo, fez
cursos sobre legislação trabalhista
e fundo de garantia.
Na chefia do departamento, ganhou certa fama entre os operários. Primeiro, porque administrava uma área estratégica, que o
obrigava a atender inúmeros associados todos os dias. Depois,
porque tinha escolaridade superior à média da diretoria -o que
o tornava referência intelectual.
Finalmente, porque cultivava
amizade com a oposição, mesmo
pertencendo à ala situacionista
(aqui, os atributos de negociador
começavam a desabrochar).
Resultado: em 1975, elegeu-se
presidente do sindicato. Abocanhou 92% dos votos. O ótimo desempenho nas urnas, entretanto,
não o livrou da suspeita de que seria um líder fraco, manipulável.
A desconfiança se apoiava num
par de constatações:
* Lula ainda não conquistara
fluência verbal. Inseguro, tremia
quando discursava de improviso
(em 1973, frequentara aulas de
oratória, sem grandes avanços).
* Paulo Vidal, que presidira a
entidade nos seis anos anteriores,
compunha a chapa vencedora como secretário-geral. Era alta, portanto, a chance de ele transformar
Lula em fantoche e continuar
mandando.
Cravo e ferradura
As previsões, porém, não se
confirmaram. Em virtude de uma
pendência que envolvia a Ford, o
presidente e o secretário se desentenderam. Lula aproveitou a deixa para neutralizar Vidal. Proibiu-o de conceder entrevistas e se
consolidou no poder.
Convicto de que o sindicato deveria abdicar definitivamente da
inclinação pelega, buscou convertê-lo em "uma caixa de ressonância da categoria". "Se os operários
reivindicarem isso ou aquilo, não
vamos represá-los. Sairemos atrás
do que desejam."
Iniciaram-se, então, as célebres
(e frustradas) campanhas contra
perdas salariais decorrentes da inflação. Os metalúrgicos -que integravam uma das indústrias
mais beneficiadas pelo "milagre
econômico" dos anos 70 - pediam reposição de 34,1% e condenavam duramente a política trabalhista do regime militar.
Lula, no entanto, evitava se associar a organizações de esquerda. Pregava a independência
ideológica do sindicato. Como dizia, gostava de "dar uma no cravo
e outra na ferradura". Criticava,
com igual veemência, os abusos
do capitalismo e os do socialismo.
Foi assim que, já desembaraçado na oratória, reelegeu-se em
1978. Obteve 98% dos votos. Para
a posse, convidou a "tropa inimiga": representantes do Segundo
Exército e o governador Paulo
Egydio Martins. Mais uma vez,
exibia apetite de negociador e tentava conciliar opostos.
Os militares -conforme declarou na época o próprio Egydio
Martins, que compareceu à cerimônia- não rejeitavam Lula.
Consideravam-no, até aquele
momento, um mal menor.
O regime estava preparando a
abertura e precisava conviver de
maneira relativamente pacífica
com vozes desarmônicas. Em tal
cenário, melhor que florescessem
líderes como o do ABC, sem apego à cartilha marxista. Pelo mesmo motivo, uma parcela do empresariado o julgava "um interlocutor de confiança" -e grupos
de esquerda espalhavam o boato
de que a CIA o cooptara.
"Não tô bom!"
Durante a segunda gestão, Lula
aprofundou reformas que desencadeara na anterior. A mais notória: alterou bastante o modo de o
sindicato se comunicar com os
trabalhadores.
Transferiu as assembléias para a
entrada das fábricas (em vez de
esperar que o associado aparecesse nas reuniões internas) e simplificou a linguagem dos boletins.
Enchia-os de quadrinhos, protagonizados por João Ferrador,
uma espécie de Pato Donald dos
peões. O personagem -que costumava advertir: "Hoje não tô
bom!"- incorporava as dúvidas
e demandas da categoria.
Em maio de 1978, uma greve estourou na Scania. Exigia-se reposição salarial. O sindicato não
convocara o movimento, mas se
apresentou para negociar com os
patrões. A fagulha se alastrou e,
em pouco tempo, 150 mil metalúrgicos do Estado cruzaram os
braços.
Quase todo dia uma fábrica se
rebelava -num turbilhão que se
prolongou até dezembro. Foi a
primeira manifestação do gênero
desde o AI-5 (1968), e Lula se sobressaiu como principal porta-voz dos grevistas, que conseguiram fechar acordos significativos.
Em março de 1979, o ABC presenciou nova paralisação. Cerca
de 80 mil metalúrgicos se concentraram no estádio da Vila Euclides (São Bernardo), reivindicando reajustes acima dos índices oficiais. O governo, desta vez, endureceu. Interveio no sindicato, os
trabalhadores não alcançaram o
que pretendiam, e a greve terminou após duas semanas.
Lula, agora célebre, já evidenciava uma guinada à esquerda
-em parte, por influência de militantes estudantis que se infiltravam entre os operários. O "líder
apolítico" não acreditava mais
numa saída unicamente sindical
para as mazelas do proletariado.
Em julho de 1978, durante congresso de petroleiros, sugeriu a
fundação de um partido que defendesse "as bases, os assalariados". A idéia prosperou. Em fevereiro de 1980, nascia o PT.
Menos de dois meses depois,
outra greve pipocava nas indústrias de São Bernardo. Estendeu-se por 41 dias, sob repressão ainda
maior que a de 1979. Os grevistas
não conquistaram nada e Lula,
preso, acabou afastado do sindicato. Quando deixou o cárcere,
assumiu a presidência do PT. Dali
em diante, iria se distanciar do
ABC -sem, no entanto, jamais
perdê-lo de vista.
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