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ARTIGO
Ousado e solidário
JOSÉ SARNEY
COLUNISTA DA FOLHA
Jamais esperei que, chegando a Nova York, me aguardasse, sem possibilidade de
voltar, a notícia da morte de
Octavio Frias, um dos maiores amigos de minha vida,
com quem desfrutei, sem limites, durante meio século, o
gosto da convivência, do querer-bem, da intimidade da
conversa, do encontro sem
censuras, da alegria pura da
palavra amigo.
Com o longo caminhar de
nossas vidas, pelo fenômeno
tão atual da compressão do
tempo, sua geração foi aproximando-se da minha e, ao
fim, nos sentimos quase contemporâneos de juventude,
de infância, de velhice. Os fatos, as pessoas, a história do
Brasil, os episódios que testemunhamos, as elevadas expectativas nos tempos bons e
as decepcionantes frustrações dos momentos ruins que
o país viveu, desfilavam em
nossas existências com a força da experiência que acrescenta sabedoria à vida. O nosso ponto de observação ficou
um só, e a nossa visão de tudo ficou igual.
Até eu mesmo
me esquecia
de mim e, nas
nossas análises e comentários, sentia-me na terceira
pessoa.
Octavio
Frias foi o último dos grandes construtores da imprensa moderna brasileira. Com ele
morre uma
geração que
teve a oportunidade excepcional de assistir a uma
revolução tecnológica da comunicação. De impactar-se
com ela e nela integrar-se.
Ninguém mais do que ele
teve a sensibilidade para assimilá-la e aderir à modernidade. Aí foi o grande inovador, o
pioneiro que renovou o jornalismo na feição gráfica, no
estilo, na linguagem, fazendo
da Folha um jornal de opinião, aberto a todos os pluralismos e a modificações de
linguagem e experiências
gráficas, no exercício permanente da transformação.
Sem sua liderança, sua coragem, sua determinação, seu
despojamento de vaidade,
sua simplicidade, sua argúcia,
por mais geniais que fossem
seus colaboradores, este processo não se tornaria viável.
Ele não transigia e, com serena coragem, sustentava a
estratégia. Frias tinha como
ninguém a crença de que o
jornalismo tem a sagrada
missão de ser a voz crítica do
povo, que, por ser o barro da
sociedade , não participa nem
opina nas decisões. Foi assim
que Jefferson criou a liberdade de imprensa.
Foi assim que Octavio Frias
foi jornalista. Nunca colocou
um milímetro de seu poder a
serviço da vaidade pessoal.
Era simples e despojado.
Gostava dele com devoção,
com querer-bem. Lágrima,
para mim, nesta hora, não é
retórica nem metáfora. Ele fazia parte do nosso universo
sentimental. Há cinqüenta
anos começou essa empatia
documentada na lembrança
dos nossos primeiros contatos, quando eu era um jovem
governador do Maranhão e ele
ficou interessado pelo projeto
de educação João de Barro, o
passarinho que faz sua casa,
que eu executava com a comunidade nas paupérrimas zonas
rurais do Maranhão.
Com a morte de Octavio
Frias, o Brasil perde um grande valor de sua paisagem humana. Ele exercia com dignidade a regência moral desse
jornal de opinião que leva a
marca de sua obstinada e austera vida.
Octavio Frias escolheu o fim
de um domingo para morrer:
quando a Redação fica vazia,
as páginas fecham cedo, as
pessoas estão ausentes. Era o
seu jeito de viver, foi o dia
de morrer.
Simples, humilde, desejoso de não ser a
manchete
principal do
dia de sua
maior circulação.
Há alguns
dias quis visitá-lo. Ele já
estava perto
de sua viagem
eterna. Manteve até o fim
o seu jeito de
ser. Vigiava
com uma técnica especial
tudo que
acontecia no
jornal, até
mesmo os colaboradores. Não
eram raras suas mensagens de
incentivo em temas bem tratados, o que importava em
sentir o seu silêncio. Era um
tipo de controle.
Em 1990, saí da Presidência
cercado de um grande patrulhamento. Nessa época, recebo uma chamada do Frias,
convidando-me a ser colunista do jornal, como já fora nos
princípios dos anos 80. Era
um gesto ousado e de solidariedade. Contou-me ele que a
Redação, quando soube, quase
entra em greve. Passados os
anos, as pesquisas de leitores
foram generosas comigo.
Frias contou-me então que os
críticos diziam: "o velho é que
tinha razão".
A Folha passa a ter sempre
uma sala vazia, sem o Frias a
enfrentar o interlocutor, com
seu método de instigantes e
agudas perguntas, do repórter
do bem-comum, sempre preocupado com o presente e o futuro. À tristeza de uma noite
de domingo em uma grande
cidade, agreguei uma tristeza
maior da perda de um brasileiro que fará falta ao Brasil.
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