São Paulo, terça-feira, 01 de maio de 2007

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ARTIGO

Ousado e solidário

JOSÉ SARNEY
COLUNISTA DA FOLHA

Jamais esperei que, chegando a Nova York, me aguardasse, sem possibilidade de voltar, a notícia da morte de Octavio Frias, um dos maiores amigos de minha vida, com quem desfrutei, sem limites, durante meio século, o gosto da convivência, do querer-bem, da intimidade da conversa, do encontro sem censuras, da alegria pura da palavra amigo.
Com o longo caminhar de nossas vidas, pelo fenômeno tão atual da compressão do tempo, sua geração foi aproximando-se da minha e, ao fim, nos sentimos quase contemporâneos de juventude, de infância, de velhice. Os fatos, as pessoas, a história do Brasil, os episódios que testemunhamos, as elevadas expectativas nos tempos bons e as decepcionantes frustrações dos momentos ruins que o país viveu, desfilavam em nossas existências com a força da experiência que acrescenta sabedoria à vida. O nosso ponto de observação ficou um só, e a nossa visão de tudo ficou igual. Até eu mesmo me esquecia de mim e, nas nossas análises e comentários, sentia-me na terceira pessoa.
Octavio Frias foi o último dos grandes construtores da imprensa moderna brasileira. Com ele morre uma geração que teve a oportunidade excepcional de assistir a uma revolução tecnológica da comunicação. De impactar-se com ela e nela integrar-se.
Ninguém mais do que ele teve a sensibilidade para assimilá-la e aderir à modernidade. Aí foi o grande inovador, o pioneiro que renovou o jornalismo na feição gráfica, no estilo, na linguagem, fazendo da Folha um jornal de opinião, aberto a todos os pluralismos e a modificações de linguagem e experiências gráficas, no exercício permanente da transformação.
Sem sua liderança, sua coragem, sua determinação, seu despojamento de vaidade, sua simplicidade, sua argúcia, por mais geniais que fossem seus colaboradores, este processo não se tornaria viável.
Ele não transigia e, com serena coragem, sustentava a estratégia. Frias tinha como ninguém a crença de que o jornalismo tem a sagrada missão de ser a voz crítica do povo, que, por ser o barro da sociedade , não participa nem opina nas decisões. Foi assim que Jefferson criou a liberdade de imprensa.
Foi assim que Octavio Frias foi jornalista. Nunca colocou um milímetro de seu poder a serviço da vaidade pessoal. Era simples e despojado.
Gostava dele com devoção, com querer-bem. Lágrima, para mim, nesta hora, não é retórica nem metáfora. Ele fazia parte do nosso universo sentimental. Há cinqüenta anos começou essa empatia documentada na lembrança dos nossos primeiros contatos, quando eu era um jovem governador do Maranhão e ele ficou interessado pelo projeto de educação João de Barro, o passarinho que faz sua casa, que eu executava com a comunidade nas paupérrimas zonas rurais do Maranhão.
Com a morte de Octavio Frias, o Brasil perde um grande valor de sua paisagem humana. Ele exercia com dignidade a regência moral desse jornal de opinião que leva a marca de sua obstinada e austera vida.
Octavio Frias escolheu o fim de um domingo para morrer: quando a Redação fica vazia, as páginas fecham cedo, as pessoas estão ausentes. Era o seu jeito de viver, foi o dia de morrer. Simples, humilde, desejoso de não ser a manchete principal do dia de sua maior circulação.
Há alguns dias quis visitá-lo. Ele já estava perto de sua viagem eterna. Manteve até o fim o seu jeito de ser. Vigiava com uma técnica especial tudo que acontecia no jornal, até mesmo os colaboradores. Não eram raras suas mensagens de incentivo em temas bem tratados, o que importava em sentir o seu silêncio. Era um tipo de controle.
Em 1990, saí da Presidência cercado de um grande patrulhamento. Nessa época, recebo uma chamada do Frias, convidando-me a ser colunista do jornal, como já fora nos princípios dos anos 80. Era um gesto ousado e de solidariedade. Contou-me ele que a Redação, quando soube, quase entra em greve. Passados os anos, as pesquisas de leitores foram generosas comigo. Frias contou-me então que os críticos diziam: "o velho é que tinha razão".
A Folha passa a ter sempre uma sala vazia, sem o Frias a enfrentar o interlocutor, com seu método de instigantes e agudas perguntas, do repórter do bem-comum, sempre preocupado com o presente e o futuro. À tristeza de uma noite de domingo em uma grande cidade, agreguei uma tristeza maior da perda de um brasileiro que fará falta ao Brasil.


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