UOL

São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LÍNGUA SOLTA

Referência religiosa é traço mais frequente nas falas do presidente, que também se considera "pai dos pobres"

Deus vira obsessão nos discursos de Lula

WILSON SILVEIRA
FÁBIO ZANINI
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Os últimos 30 discursos feitos pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva revelam que ele adquiriu o hábito de citar Deus a todo instante e a tendência de se considerar "pai" dos brasileiros, principalmente dos mais pobres.
Das citações recorrentes, Deus é a mais frequente, aparecendo 36 vezes -foi Deus quem o colocou na Presidência, graças a Deus o dólar caiu, Deus abençoe a todos, se Deus quiser... O nome de Deus só não aparece nos discursos formais, que são minoria.
A imagem de "pai dos pobres" -slogan criado no Estado Novo pelo Departamento de Imprensa e Propaganda para enaltecer Getúlio Vargas (1883-1954)- é frequente nos discursos sobre os mais diversos assuntos. Como o presidente em geral discursa de improviso, ele passa subitamente de um assunto a outro e faz as mais diferentes considerações, de natureza pessoal, política e até filosófica, sem que se saiba exatamente onde quer chegar.
O ministro da Secretaria Geral da Presidência, Luiz Dulci, disse que Lula "é um grande orador popular". Dulci, que participa da elaboração dos discursos mais importantes do presidente, afirma que Lula "consegue combinar impacto emocional e conteúdo na medida certa, o que é fundamental para o discurso político".
"Eu quero cuidar do Brasil. Eu quero cuidar do povo brasileiro. Quero cuidar de cada criança deste país como se estivesse cuidando do meu próprio filho", disse ele em 9 de maio, em Xapuri (AC), no lançamento de programa de parceria com o governo do Acre.
Em 29 de abril, no aniversário da Embrapa, comparou os brasileiros a crianças e disse que a função dele como presidente era como a do pai que precisa dizer ao filho que não tem dinheiro para lhe dar determinado presente de aniversário: "O pai irresponsável prometeria o presente para o ano seguinte, mas o responsável simplesmente diz que não pode".
Essa mesma imagem ele usou na entrevista que concedeu na última terça-feira a jornalistas estrangeiros. "Eu quero tratar cada pessoa deste país, de preferência as mais pobres, como se eu estivesse tratando o meu próprio filho", declarou no dia 6 de maio, na entrega da medalha do mérito Serigy, em Aracaju (SE).
"Nós temos que tratar nosso povo com o carinho com que a gente trata o filho da gente", afirmou no mesmo dia, em reunião com a Frente Nacional de Prefeitos.
Dulci não vê traços de messianismo nos discursos de Lula, como julga o cientista político Otaciano Nogueira (leia texto nesta página): "O que ele transmite é muita autenticidade e confiança nas mudanças. Com essas características, o presidente Lula resgatou a palavra como um instrumento importante da ação política e da relação com a sociedade".
Enquanto defende as reformas constitucionais, o presidente também usa seus discursos em solenidades oficiais para falar sobre assuntos espirituais, dar conselhos existenciais e discorrer sobre a missão do homem na Terra.
Eventos de natureza religiosa têm sido frequentes. Somente em maio, o presidente incluiu quatro deles em sua concorrida agenda: foi a uma missa em São Bernardo, prestigiou o encontro anual da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), em Itaici (SP), rezou no túmulo de Chico Mendes, em Xapuri (AC), e recebeu um grupo de jovens católicos italianos no Palácio do Planalto.
O perfil "espiritualizado" do presidente já foi notado por alguns de seus amigos. "O Lula está menos preso ao dia-a-dia do governo, mais seguro, e assim está soltando mais esse lado proverbial que ele traz desde o sindicalismo", diz o assessor especial Frei Betto, amigo há 25 anos do presidente e autor, nos anos 80, de um estudo sobre a oratória de Lula para uma publicação britânica.
Os discursos do presidente frequentemente revelam angústia com os rumos da humanidade. Por vezes, sua oratória lembra a de um sermão, que ele repete nas ocasiões mais improváveis. Como em uma solenidade no Planalto em 14 de maio, quando sancionou o Estatuto do Torcedor e discursou para uma platéia repleta de cartolas. "Estamos ficando uma sociedade, eu diria, meio nervosa. Acho que a sociedade está ficando cada vez mais individualizada."
Lula rotineiramente envereda por temas ligados à missão do homem na vida e seu legado para futuras gerações. "Ou nós assumimos essa responsabilidade [acabar com a fome no mundo], ou, certamente, os bens materiais que cada um de nós conquistou não compensaram a nossa passagem pela Terra", disse, em 16 de maio, em videoconferência realizada pelo Banco Mundial.
Em 9 de maio, ao discursar em frente ao túmulo de Chico Mendes, preferiu não falar de política, mas dissertar sobre a necessidade de superar as adversidades. "O homem não nasceu para ceder às dificuldades, nasceu para superar todas as dificuldades."
Frei Betto diz que a principal característica de Lula é ser "exortativo", ou seja, buscar incentivar moralmente o interlocutor. "A mensagem do presidente é ética e moral, não puramente racional, como ocorre com a maioria dos políticos", diz o assessor.



Texto Anterior: Frase
Próximo Texto: Cientista político afirma ver traços "messiânicos"
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.