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São Paulo, domingo, 01 de junho de 2003

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ENTREVISTA

Historiador não acredita na viabilidade do Mercosul a longo prazo e duvida da liderança do Brasil na América Latina

Lula tem política externa confusa, diz Maxwell

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Há "confusão" maior na política externa brasileira do que em qualquer outra área do governo, avalia o historiador inglês Kenneth Maxwell. Membro em Nova York do Conselho de Relações Exteriores -uma das principais instituições de estudos na área no mundo, responsável pela publicação da revista "Foreign Affairs"-, o brasilianista é cético quanto às possibilidades de sucesso das principais apostas do Itamaraty sob Luiz Inácio Lula da Silva.
Mercosul, por exemplo. Maxwell diz não acreditar na sua viabilidade como alternativa de longo prazo. Isso por tratar-se de uma união aduaneira em que os dois principais parceiros "são vulneráveis às idiossincrasias de investidores externos".
Sobre a tentativa brasileira de se firmar como a principal liderança na América do Sul, ele responde que "uma liderança precisa de seguidores". E completa: qualquer país vizinho optaria pelos EUA em detrimento do Brasil, dada a oportunidade de acordo bilateral.
Maxwell elogia, entretanto, de maneira entusiasmada, a política econômica de Lula, que ele não credita como mera continuidade da seguida no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para o historiador, a aprovação de apenas "60% das reformas" já permitiria o início do processo de diminuição da vulnerabilidade externa do país, queda da taxa de juros e retomada do crescimento.
Leia a seguir trechos da entrevista, realizada por e-mail ao longo da semana passada.
 

Folha - O sr. disse, logo após as eleições, que o risco de uma crise de confiança continuava a se impor sobre o Brasil e que os primeiros seis meses seriam perigosos e frágeis. Algo muda depois desse prazo? A tal confiança dos mercados não precisa ser conquistada permanentemente?
Kenneth Maxwell -
Há duas questões distintas aí. A primeira tem a ver com a histeria do mercado [durante as eleições] -baseada numa leitura equivocada da personalidade de Lula, o que, agora vemos, era infundado. Mas esse medo tinha que ser enfrentado de frente e rapidamente. Eu não tinha a menor dúvida no ano passado de que um governo Lula seguiria uma receita de política econômica ortodoxa no início. Isso porque não havia alternativa -precisavam acalmar o mercado, estavam obrigados a seguir o acordo acertado com o FMI, precisavam aplicar um choque de credibilidade e perceberam que não podiam se dar ao luxo de falhar, pois não teriam uma segunda chance. Tudo isso é, entretanto, questão conjuntural. Uma vez que a confiança foi restabelecida, já que a histeria se baseava no medo e não em fatos, a recuperação devia ser rápida e intensa, e é isso que temos testemunhado na queda do risco Brasil, na valorização do real e no retorno de algum fluxo de capital e linhas de crédito.
Uma segunda questão tem a ver com o longo prazo e é mais difícil, dadas as reais debilidades estruturais e vulnerabilidades herdadas. Ironicamente, essas foram subestimadas pelos mercados. Isso porque eles compraram a idéia de que o que o Brasil precisava era da continuidade da política de FHC.
Do meu ponto de vista, a situação era insustentável -pois aquela política tinha tornado o país extremamente vulnerável e dependente de fluxos de capital externo. E vale lembrar que, apesar do ambiente externo favorável nos anos 90, o Brasil foi obrigado a recorrer duas vezes aos empréstimos do FMI.
Logo, essa persistente vulnerabilidade externa é preocupante e explica o fato de o governo buscar simultaneamente manter os investidores calmos enquanto avança com reformas (a previdenciária e a tributária) fadadas a serem vistas como impopulares.
Os benefícios serão enormes se essa mudança tão difícil for alcançada, embora de fato seja ainda cedo para saber se tudo vai funcionar perfeitamente e recolocar o Brasil num caminho de menor vulnerabilidade e dependência externa. O risco de retrocesso e de retorno da histeria ainda existem, e permanecerão existindo enquanto não forem superadas as debilidades do país. É isso que vai estar em jogo nos próximos seis meses. E haverá uma dura resistência à mudança. Como nos mostra a França, a tentativa de reformar a aplicação ineficiente de recursos não é fácil -e a malversação de recursos na França é uma pálida sombra daquilo que acontece no Brasil

Folha - O sr. crê numa "fase dois" da economia? A lógica de gerenciar as expectativas do mercado não a inviabiliza? Como crescer com a atual taxa de juros?
Maxwell -
Sim, creio que é possível, e além disso ela é essencial. Se as reformas avançarem ao longo dos próximos meses -mesmo se apenas 60% delas forem concretizadas-, creio que os índices de crescimento para o próximo ano já poderão ser maiores e que o governo com isso possa ter a habilidade de investir esses recursos em programas sociais, educação, infra-estrutura e diminuição da vulnerabilidade do país a choques externos. Conseguir isso é importante não só para Lula e o PT, mas para o Brasil. A alternativa seria um renovado ciclo de dependência e a renovação das desigualdades estruturais.

Folha - Há algum ceticismo no Brasil, inclusive da própria Fiesp, sobre a possibilidade de grande mudança a partir das reformas. Por que o sr. afirma que elas são tão importantes para superar a dependência externa?
Maxwell -
Para começar, se as reformas passarem, o impacto será bastante positivo no exterior. Demonstrará de maneira decisiva que o governo é capaz e sério quando se trata de lidar com assuntos domésticos conflitivos, que muitos por muito tempo disseram ser essenciais, incluindo o governo anterior, mas que sucessivos governos brasileiros, incluindo o anterior, foram incapazes de realizar.
Não creio que alguém possa subestimar o efeito positivo que isso terá na imagem do Brasil. Trará também a confiança do setor privado brasileiro, em que, como você diz, o ceticismo é grande -e por bons motivos porque de fato todas essas promessas já foram ouvidas antes, e eles sabem o poder dos interesses organizados (incluindo o deles próprios) trabalhando contra as reformas. Logo, como dizem em Chicago, "show me".
As recompensas potenciais para o sucesso das reformas são claras: dará maior controle aos gastos vinculados, maior liberdade de gastos ao governo, permitirá uma diminuição substancial da taxa de juros e conterá os lucros advindos de instrumentos especulativos. É importante também reconhecer o ambiente global em que isso está acontecendo -há uma tendência deflacionária nos países ricos e o risco de guerra, conflitos civis e terrorismo em partes importantes da Ásia e do Oriente Médio. Nesse cenário, o Brasil será um dos poucos países em desenvolvimento a terem um perfil positivo e investidores, acima de tudo investidores brasileiros, que serão encorajados a colocarem seu dinheiro em setores promissores para tirar vantagens das oportunidades que surgirão com o crescimento da economia.
Há nesse momento grande quantidade de capital brasileiro em paraísos fiscais, mas sem grandes lucros; quando começarem a retornar ao país, outros investidores os seguirão.

Folha - Os efeitos dessa reforma não seriam sentidos de imediato. Quanto tempo ainda o sr. crê que o Brasil terá que continuar a manter as atuais diretrizes macroeconômicas, seguindo o modelo em que se enfiou na década de 90?
Maxwell -
Eu não acho que o Brasil ainda esteja sob o mesmo modelo econômico dos 90 -o próprio FMI, o Banco Mundial e o Tesouro americano reconhecem isso. Não se fala mais em câmbio fixo, por exemplo, e há preocupação com os aspectos sociais e desenvolvimentistas das políticas macroeconômica e fiscal -e acho que há mais convergência aqui do que possa parecer, e o Brasil pode até se tornar o novo modelo que eles todos procuram. Mas devo deixar claro que não creio que uma mudança radical seja possível ou desejável.

Folha - A eleição de Nestor Kirchner na Argentina pode, de alguma maneira, influenciar na condução da política interna no Brasil?
Maxwell -
Espero que não. Não vejo com bons olhos o futuro da Argentina. Ela poderia se tornar uma pedra amarrada ao pescoço do Brasil. A Argentina permanece quebrada, empobrecida e guiada por frações de um establishment político totalmente corrupto, incompetente e perigosamente fragmentado.

Folha - A Argentina parece confirmar uma "guinada à esquerda" na América do Sul. Esse guinada pode ir além do mero discurso? Há condições objetivas que permitam-na acontecer de fato?
Maxwell -
Há esquerdas e esquerdas na América Latina. Esquerdas antigas, não renovadas, cegas de antiamericanismo. Há também velhas esquerdas populistas, caudilhescas e militaristas a la Chávez. Há ainda novas esquerdas pragmáticas, que reconhecem os constrangimentos com que têm que lidar, mas que buscam usar os instrumentos que têm para tentar superar a vulnerabilidade externa e a desigualdade social. O Brasil é sem dúvida líder da esquerda pragmática agora. Mas não vejo uma tendência unificada de esquerda [na região]; algumas experiências parecem mais, por vezes, respostas desesperadas ao fracasso.

Folha - Como o sr. lê a estratégia brasileira de tentar assegurar para si a liderança da América do Sul? Poderia influenciar e trazer ganhos em negociações como Alca e OMC?
Maxwell -
Uma liderança necessita de seguidores. Essa aspiração tem sempre estado mais na mente das autoridades em Brasília do que na realidade. Muitos países hispânicos da América do Sul, por exemplo, optariam por negociar diretamente com os EUA no caso de qualquer conflito real sobre comércio se oferecida a chance de um acordo bilateral. Será que Chávez, por exemplo, cessaria de exportar petróleo para os EUA? Quanto à Europa, a idéia de que eles possam abrir o setor agrícola para o Brasil é uma piada.

Folha - A estratégia de política externa brasileira está no caminho errado? É pouco producente tentar aprofundar as relações na América do Sul, e dar menor ênfase à Alca?
Maxwell -
O Brasil enfrenta graves dilemas no front internacional, e a área de relações exteriores é onde há claramente mais confusão dentro do governo. Não vislumbro saídas fáceis. Será muito difícil romper as barreiras protecionistas dos EUA e da Europa.
Não creio que o Mercosul seja uma alternativa a longo prazo -provavelmente acordos de livre comércio sejam uma opção que oferece mais flexibilidade que uma união aduaneira em que os dois principais parceiros são vulneráveis às idiossincrasias de investidores externos e nenhum dos dois pode jogar o papel que, por exemplo, a Alemanha Ocidental representou na transferência de recursos para ajudar os parceiros mais pobres entre os anos 70 e 80. Não há nada que possa deter múltiplos acordos de livre comércio, por exemplo, como os casos do Chile e do México já demonstraram. Ambos consideraram essa opção como vantajosa. Nesse sentido é um erro pensar que a Alca é um sistema fechado -não é. Mas minha impressão é que se vier a ocorrer uma confrontação entre o Brasil e os EUA sobre isso, os americanos têm mais cartas na manga. Um enfrentamento do tipo "pegar ou largar" não é uma atitude perspicaz para o Brasil.

Folha - O que o país deveria fazer?
Maxwell -
O Brasil deve negociar simultaneamente com a Europa e os EUA, como de fato está fazendo. Há no Brasil a idéia de que a negociação simultânea possa "jogar um contra o outro" gerando ganhos para o país -e talvez possa-, mas há muito ainda a ser dito sobre um acordo bilateral a sério e do mais alto nível entre os EUA e o Brasil -um acordo que defina as áreas de concordância e conflito e não permita que elas sejam definidas nos níveis burocráticos inferiores. Se isso ocorresse, as coisas andariam. Se não, as negociações terminarão apenas num atoleiro de rancor e azedume. A agenda não deve ser meramente comercial, que deve ser apenas parte do grupo de políticas necessárias -e acho que Lula está sendo bastante sábio ao ir para o encontro do G8 em Evian, com amplo espectro de propostas a respeito da economia global e de questões de justiça social.



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