São Paulo, domingo, 01 de julho de 2001

Texto Anterior | Índice

ELIO GASPARI

Criou-se a mágica sem coelho

Poucos governos procuraram limpar as contas públicas como o de FFHH. Exatamente por isso, não faz sentido que, ao apagar das luzes, ele comece a fabricar esqueletos para seu sucessor.
Sua política econômica contraiu o crescimento e expandiu o desemprego, a dívida e a carga tributária. Até aí, nada demais, pois isso aconteceu dentro de uma lógica assumida. Ela foi ao julgamento popular na eleição de 1998, e FFHH ganhou mais quatro anos de mandato pela vontade do povo.
A truculenta demissão da economista Solange Vieira da Secretaria de Previdência Complementar jogou luz sobre a fabricação de um esqueleto que poderia vir a se juntar a outro, já guardado no armário.
O esqueleto já existente é o do preço de geração da energia elétrica. Seja quem for o futuro presidente, herdará, a partir do seu primeiro dia de governo, a gracinha de um aumento progressivo do preço da energia.
Hoje, as centrais antigas vendem o megawatt-hora a um preço que vai de R$ 43 a R$ 50. As centrais novas praticam dois preços. Um, o das que assinaram contratos de fornecimento, é de cerca de R$ 75 por megawatt. As que preferiram não se comprometer, ajudadas pelo racionamento, estão vendendo-o ao preço da rua. Cobram até R$ 684.
A partir de janeiro de 2003, as geradoras que vendem o megawatt a R$ 43 ou R$ 50, passarão a vender a quarta parte de sua produção por algo em torno de R$ 75. Quatro anos depois, toda a produção sairá por esse preço. Grosseiramente, a energia sofrerá um aumento de 35% para os consumidores residenciais e de 60% para os industriais.
O esqueleto escondido é a debilidade financeira dos fundos de pensão das empresas estatais. A doutora Solange foi defenestrada pelo ministro Roberto Brant (que se recusava a recebê-la, apesar de ser pago para isso) porque colocou na internet a lista dos 86 fundos que carregariam um déficit atuarial de R$ 15,7 bilhões. Segundo a repórter Julianna Sofia, a conta certa seria de R$ 30 bilhões. Em vez de tomar providências para espantar o fantasma, Brant cuidou para que a choldra não o visse e mandou tirar a lista do ar. Pela lei da gravidade, quando o governo começa a esconder um buraco, ele acaba migrando para a bolsa da Viúva.
Os dois fantasmas juntam-se quando se sabe que renomados fundotecas querem contornar o rigor da legislação que os obriga a evitar riscos em seus investimentos. Oferecem-se para investir em energia. Será a junção da fome com a vontade de comer. Os fundos querem investir e o governo precisa de investimentos. Pela mesma lei da gravidade, sempre que ninguém quer investir num setor (pelos riscos do mercado ou da má regulamentação), o governo usa o ervanário dos fundos. É conhecida a hostilidade da doutora Solange a essa idéia.
Pelo processo de privataria imposto ao sistema elétrico, os fundos de pensão de empresas estatais já detêm mais de 25% das ações de pelo menos seis distribuidoras de energia. Em três delas são donos de mais de 50% das ações.
O que preocupa nessas mágicas é que caberá ao próximo governo arrumar os coelhos que deverão ser retirados da cartola.


Meteram Caxias numa briga boba

Quase 20 anos depois de ter se afastado da caça a livros, o nome do Exército está agora associado à ordem de apreensão de uma obra que sua biblioteca editou. O juiz Mauro Souza Marques da Costa Braga, da 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro, determinou a busca e o recolhimento dos exemplares de "O Cerne da Discórdia: A Guerra do Paraguai e o Núcleo Profissional do Exército", do historiador Vitor Izecksohn. O trabalho foi publicado pela Biblioteca do Exército em 1997, contra a vontade do autor, que reclamava de adulterações feitas em seu texto.
Izecksohn narra em seu trabalho as diferenças de pontos de vista surgidas no final da Guerra do Paraguai, quando o duque de Caxias (com razão) sustentava que seu desfecho dependeria da organização da tropa. O capitão Benjamin Constant, do alto da sua irrelevância hierárquica e da sua inexperiência numa guerra em que esteve apenas onze meses, queria que a tropa se movesse, livrando-se dos ataques do inimigo e das doenças que a devastavam.
Durante o trabalho de edição do livro, dois coronéis da Bibliex resolveram lapidar a História. Sugeriram a supressão das caricaturas que o autor incluíra no apêndice da obra. Elas criticavam o sistema de recrutamento das tropas (a laço). Argumentavam que os desenhos eram de má qualidade e que problemas técnicos recomendavam a supressão. Tiveram a concordância do autor. Até aí, tudo bem.
Também decidiram expurgar do apêndice o texto de um fragmento manuscrito de Benjamin Constant, sem data nem assinatura. O oficial julgou que o texto ofendia a memória de Caxias. A biblioteca assegura que essa supressão deu-se com a "total concordância" de Izecksohn. Tem razão, pois não há registro de que ele tenha reclamado na ocasião.
Terminada a revisão, o pesquisador verificou que seu texto sofrera novas alterações, quase todas de forma. Achou que seu trabalho fora desfigurado e propôs que se destratasse a edição, pois tinha quem o publicasse sem alterações. Nada feito. A Bibliex lançou o livro.
Izecksohn foi à Justiça. O juiz Costa Braga deu-lhe razão, entendendo que, pela lei, a editora não pode alterar o texto de uma obra sem a anuência do autor.
Tremenda trapalhada. Até as pedras sabem que Benjamin Constant (fundador da República) não se bicava com duque de Caxias (patrono do Exército). Suas cartas à mulher mostram que seu ressentimento incluía a carga rotineira do fisiologismo das transferências e gratificações. Na temática militar do Paraguai, por mais letrado que fosse o capitão, o velho marechal tinha razão, inclusive ao brigar com d. Pedro 2º, que prolongou a guerra até que se arrancasse o couro de Solano Lopez. Os trechos mais brandos dessas cartas são conhecidos desde 1894.
Seria compreensível se a Biblioteca do Exército não quisesse publicar uma obra na qual se transcrevessem ofensas ao seu patrono, mas ninguém lhe pediu que se metesse num dos vespeiros da história militar brasileira. Benjamin Constant chamou Caxias de "nulidade" e chegou a se perguntar: "Será o Caxias no mundo social o que é a bolha de sabão no mundo físico?".
Se a Biblioteca do Exército decidiu se meter nessa encrenca, que arrostasse, acolhendo as opiniões do autor e, sobretudo, os textos do capitão. Em sua justificativa, a biblioteca diz que expurgou a a carta "de data e autoria desconhecidas". Pior a defesa que o ataque. O fragmento não tem assinatura, mas o estudo da caligrafia não deixou dúvidas ao professor Renato Lemos, pesquisador da vida de Benjamin Constant e também seu melhor biógrafo. Se houver interesse, pode-se requisitar uma perícia.
O duque de Caxias era um homem prático. Ficaria zangado se descobrisse que a biblioteca do seu Exército publicou um texto cuja autoria é renegada. Mais zangado ficaria se alguém lhe contasse que parte dessa briga deriva do desconforto de um capitão encrenqueiro que se julgava perseguido pela má sorte. Qualquer duque sabe que, salvo seu ajudante-de-ordens, todos os capitães reclamam dos marechais.
Isso para não mencionar a inutilidade da briga. As cartas de Benjamin Constant (inclusive o fragmento com a diatribe) estão publicadas desde 1999, num livro organizado pelo professor Lemos. Chama-se "Cartas da Guerra. Benjamin Constant na Campanha do Paraguai". Edição do Instituto do Patrimônio Histórico, sob o patrocínio da Petrobras, num serviço à história nacional.


Sarney, o bom

O ex-presidente José Sarney é um pacificador incorrigível. Em 1996, quando presidia o Senado, apresentou um projeto que obrigava o governo a fornecer gratuitamente o coquetel de remédios necessário à vida dos portadores do HIV. Viu-o aprovado, mas soube que todos os pareceres da ekipekonômica e da burocracia jurídica do governo recomendavam a FFHH que o vetasse.
Hoje a política do governo em relação à Aids tornou-se uma jóia da coroa do tucanato. Um programa que custa US$ 300 milhões por ano fornece os remédios a cerca de 100 mil pessoas. Não há força humana capaz de levar Sarney a dizer os nomes dos defensores do veto ao seu projeto.
Limita-se a informar que procurou FFHH, expôs o caso e foi imediatamente atendido. Acrescenta que, numa primeira fase, o Executivo fez corpo mole, mas, depois que seu colega José Serra foi para o Ministério da Saúde, a lei foi cumprida ao pé da letra.
Se os sábios da economia e da legislação tivessem prevalecido, pode-se estimar que teriam conseguido matar pelo menos 20 mil pessoas.


Lei de Lafer

Uma história que dá prazer noticiar.
Há duas semanas, quando o governo esteve a um passo de baixar a tarifa de importação dos produtos eletrônicos, de telecomunicações e de informática, o presidente da Fiesp, Horacio Lafer Piva, atacou-o dizendo que "talvez Brasília esteja distante do Brasil".
No dia seguinte, seu primo Celso Lafer defendeu o governo, do qual é ministro das Relações Exteriores, classificando a grita dos industriais de "provincianismo talibanesco".
Ficou a impressão de que havia uma briga de Lafer com Lafer.
O que havia na verdade era uma soberba demonstração de disciplina de um servidor público.
Celso Lafer defendeu o governo em público ao mesmo tempo em que lutava, dentro do ministério, para que a tarifa não fosse reduzida. Foi um dos ministros que melhor argumentou contra a providência. Quando a mudança foi rebarbada, o mérito ficou com FFHH, a quem coube a decisão final. Poucas pessoas souberam da posição do chanceler fora do círculo restrito do Planalto.
Esse tipo de conduta poderia ser conhecido como "lei de Lafer": fica com o governo na hora de apanhar e se afasta na hora de festejar.


O leitor esclarece

O leitor Gustavo Wetsch esclarece. Os brasileiros Ribeiro de Barros e João Negrão não foram os primeiros pilotos a atravessar o Atlântico Sul. Foram a quinta dupla, em maio de 1927.
A primeira travessia foi dos portugueses Sacadura Cabral e Gago Coutinho, em 1922. Vieram depois Ramon Franco e Júlio Alda Ruiz, em 1926. No ano seguinte, Francesco De Pinedo e Carlo Del Prete. Mais Manoel Sarmento de Beires e Jorge de Castilho.


De coração
É óbvio que FFHH quer ser sucedido por um tucano, mas, admitindo-se que fosse condenado a escolher entre Lula, Itamar Franco e Ciro Gomes, iria para a cabine eleitoral com a estrela do PT na lapela.

ENTREVISTA
Jefferson Péres
(69 anos, senador, candidato derrotado à presidência da Casa, numa votação na qual lhe faltaram até mesmo quatro dos 16 votos da bancada oposicionista)

Depois que o destino fez do senhor um senador presidido por Jader Barbalho, como se sente ao ter o seu Conselho de Ética presidido por Gilberto Mestrinho?
Seria uma indelicadeza e uma arrogância de minha parte julgar liminarmente um colega. É um tipo de prepotência que não faz o meu estilo e que leva a muito pouca coisa. A respeito da condução do senador Mestrinho à presidência do Conselho de Ética, posso lhe dizer que, num momento em que o presidente do Senado sofre acusações que poderão levá-lo a um julgamento, seus amigos deveriam se declarar impedidos de influir nesse processo. O senador Mestrinho é declaradamente um amigo do senador Barbalho, e este é declaradamente um amigo de Mestrinho. Acredito que, se ele se declarasse impedido de tratar desse caso, ambos teriam a ganhar. Com eles, o Senado e o país.
Não há na história do Senado uma época em que seu prestígio tenha chegado a um ponto tão baixo. O senhor vai disputar a reeleição?
Acho que vou, mas não tenho certeza. Quando olho para o Senado, fico com atitudes ciclotímicas. Nas fases de otimismo, acho que a Casa melhorou. Tornou-se mais transparente, menos corporativa. Na atual legislatura o senador Luiz Estevão foi cassado, e outros dois, Antonio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, renunciaram aos seus mandatos. Isso jamais aconteceu. Depois eu entro na fase pessimista. A Casa piorou de qualidade. Falta-lhe uma elite, o que nos faz sonhar com o tempo em que nela tinham assento homens como Milton Campos e Afonso Arinos. Houve uma certa mediocrização. Quando estou otimista, bato no teto e começo a ficar pessimista. Quando o meu astral vai para o fundo do poço, meu otimismo ressurge. Acho que se pode fazer alguma coisa para que a situação melhore.
Como se poderia baixar a taxa de tolerância do Senado?
A primeira e única obrigação do Senado é a de arquivar qualquer tipo de leniência em relação ao andamento das acusações que se fazem contra o senador Jader Barbalho. Que cada caso, de qualquer época, seja investigado. Vamos investigar, provando à opinião pública que nada foi varrido para baixo do tapete. Depois, vamos pensar no resto. Se fizermos isso, o Senado cresce. Se não fizermos, ele perde até mesmo a confiança que passou a merecer recentemente, com a condução que deu aos três casos em que os senadores deixaram a Casa.


Texto Anterior: Rio: Polícia investiga participação de PMs em chacina
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.