São Paulo, domingo, 01 de agosto de 2004

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JANIO DE FREITAS

O maior dos direitos

O mais consagrado dos direitos vigentes no Brasil independe do regime, se ditadura ou a chamada democracia. Também está acima da Constituição, dispensando-a de registrá-lo entre os demais direitos, tão menores. Seletivo na determinação de quem o usufrui e generalizante nos efeitos sobre os que não o possuem, é o grande, o imbatível e brasileiríssimo direito ao abuso.
A semana pareceu uma concentração de aplicações desse direito maior. Não, sua aplicação é cotidiana e incessante, com a mesma facilidade atravessa as semanas e os anos. Houve, sim, acúmulo de exposições que costumam ser esparsas -quando não beneficiadas pelo mais freqüente silêncio-, e concentrá-las proporciona um exercício didático e simples.
Na semana pródiga, os dirigentes do Banco Central mostraram não se satisfazer só com o direito e o poder, concedidos por Lula, de governar o governo. É lógico, então, que o presidente do BC, Henrique Meirelles, considere desprezível a revelação da "IstoÉ" de que, para a Receita Federal, constasse como residente nos Estados Unidos entre 1996 e 2002, e à Justiça Eleitoral afirmasse, para formalizar sua candidatura a deputado federal, ter domicílio eleitoral em Goiás nos anos de 2001 e 2002.
As leis eleitorais são feitas pelos políticos com o cuidado principal de deixar-lhes todas as brechas possíveis. Mesmo, porém, que Henrique Meirelles seja favorecido por brechas da legislação, não conta com brecha na ética e na moralidade pública para acobertar a contradição de suas afirmações. Seu alegado domicílio eleitoral sem domicílio real, só para candidatar-se, não deixa de ser, na prática, o que de direito é falsidade ideológica.
A prática pegou também, na mesma ocasião, outro dirigente do BC, Luiz Augusto Candiota, que deixou o cargo sob a acusação de remessas e contas no exterior inconfessadas à Receita Federal. É abuso muito comum no pessoal do sistema financeiro, privado ou público. Tão comum que, de abuso, até passa a norma. Menos comum, por falta de mais oportunidades, é "a coincidência" que fez com que o autor de um boletim do banco CSFB Garantia antecipasse as pressões para a saída de Candiota e, depois, fosse o nomeado para a vaga que antecipara. Rodrigo Azevedo já entrou no BC abusando da adivinhação e da coincidência. O homem certo no lugar certo.
Dezesseis de uma vez. Rima, e poderia ser uma solução. Quatro ex-presidentes e 14 ex-diretores do BNDES foram agora acusados, em ação do Ministério Público Federal, de improbidade administrativa no desenrolar da privatização da Eletropaulo. A cobrança, como indenização ou restituição, de R$ 41 milhões a Luiz Carlos Mendonça de Barros, Pio Borges, Andrea Calabi e Francisco Gros é, claro, muito pequena para assustar esses bem-sucedidos freqüentadores de cargos públicos. Mas a iniciativa dos procuradores José Roberto Oliveira, Suzana Fairbanks Lima e Luciana Pinto tem o mérito de documentar o quanto o governo Fernando Henrique, com suas privatizações, abusou do direito de abusar.
Como o direito de abuso não depende dos montantes envolvidos, não fazem má figura os R$ 70 mil dados pelo Banco do Brasil por bilhetes para um show de arrecadação financeira do PT. Existe a explicação, que livra a face dos petistas dirigentes do BB, Henrique Pizzolato e Ivan Guimarães, de que a casa de show propôs ao banco a compra dos 70 ingressos sem informar a finalidade petista do evento. Se houvesse uma pequena investigação, conviria apurarem quem recomendou à moça que mandasse uma proposta formal ao BB, para decisão de dirigentes petistas, e não a outros bancos. O direito de abuso inclui o direito a variadas formas, mesmo que uma cartinha, de encobrimento e proteção.
É o que se passa com a imoralidade que são as abusivas relações entre poder público e os abusados planos e seguros de saúde. Desde o seu surgimento aqui, são um dos grandes escândalos de abuso que nunca chegam a ser suficientemente escandalosos. Crias da atividade genial que são os bancos, planos e seguros de saúde inventaram outra modalidade de exploração nas duas pontas: exploram os associados na cobrança exorbitante e exploram os prestadores de serviços médicos com tabelas que não são de pagamento, são de humilhação. Diante de aumentos que beiram os 100%, o governo Lula, outro especialista em governar com medidas provisórias, apenas recorre à Justiça. Ou seja, transfere a decisão do governo ao Judiciário, para não se contrapor ao direito de abusar.
O conflito de Telecom Itália e Brasil Telecom inclui abusos de todos os gêneros para os lados. O noticiário esbanjou envolvimentos de grampos telefônicos, furto de e-mails, um espião à portuguesa, a investigadora Kroll Associates, participação do ministro Luiz Gushiken em favor de um dos lados, a ligação do conflitante Luiz Roberto Demarco com arrecadação financeira para o PT de Gushiken, os poderosos empresários Daniel Dantas (um expoente na capacidade de fazer inimigos) e Carla Cicco indicados como contratantes de serviços criminosos - enfim, uma enciclopédia do direito ao abuso, que traz implícito, não esqueçamos, o direito à impunidade.
Uma semana merecedora mesmo, ao seu final, da informação de que o chefe da Advocacia Geral da União, Álvaro Ribeiro da Costa, está demissionário. Não quer dar os pareceres favoráveis cobrados pela Presidência para medidas que, legalmente incabíveis, são ditadas pelo direito de abuso, o maior dos direitos vigentes no Brasil.



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