São Paulo, segunda-feira, 01 de novembro de 2004

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ANÁLISE

E ainda por cima, mulher!

MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lula disse uma vez que o preconceito só pega em quem está vulnerável. Isso foi em 1994, quando Ruth Escobar teria dito, e Jabor escreveu, que um segundo turno entre Fernando Henrique e Lula era uma disputa entre o filósofo e o encanador. "Mas o Brasil está precisando mais de um encanador do que de um filósofo", respondeu Lula e perdeu a eleição. Mas não perdeu a pose.
Recordo o episódio para tentar entender por que, nesta eleição municipal, os preconceitos atingiram tão em cheio a imagem de Marta Suplicy a ponto de a porcentagem de votos da atual prefeita de São Paulo ter sido mais baixa do que o índice de aprovação de sua administração.
São preconceitos contra uma mulher no poder, denunciou Marta. O que não diz grande coisa. A beleza, a "sensibilidade" e outras fantasias do senso comum a respeito das qualidades femininas também abrem portas e facilitam o caminho de mulheres que saibam se aproveitar disso. Acreditar que alguém, por ser mulher, tem mais qualidades para administrar uma cidade do que um homem também é uma opinião preconceituosa.
Mas a complexa combinação de suas virtudes públicas e "vícios" (aspas necessárias) privados, "with a litle help" da imprensa quase toda ela serrista, não favoreceu a prefeita nesta eleição. Ouvi gente dizendo que jamais votaria em Marta "depois do que ela fez com o pobre Eduardo". Ouvi todos os tipos de fantasias e fofocas grosseiras a respeito do casamento com Luis Favre. Uma insólita associação com a nacionalidade de Favre produziu em alguns a convicção absurda de que Marta Suplicy estaria se transformando em uma Evita brasileira! E acima de tudo ouvi da boca de inúmeras mulheres declarações de antipatia e rejeição pela imagem da prefeita, seu guarda roupa, o botox, o penteado, o jeito de falar, a suposta arrogância nos enfrentamentos pesados.
Nada disso fala da competência administrativa de Marta e sua equipe de governo. Mas os traços de sua aparência e os detalhes de sua vida pessoal foram mais decisivos para derrubá-la do que as críticas aos aspectos falhos de sua administração. Talvez Marta tenha cometido dois pecados imperdoáveis para uma mulher em posição de poder: primeiro, não fez mistério a respeito de sua nova vida amorosa, permitindo mesmo um certo exibicionismo em torno de seu casamento e de sua felicidade. Segundo, como mulher apaixonada, dedicou-se demais aos cuidados com o corpo, o rosto, com o figurino às vezes chique demais para quem exerce o mais importante cargo público em uma cidade com tanta pobreza, como é São Paulo.
Em um homem, esses detalhes, pois são detalhes, não chamariam tanta atenção. A imprensa não teria tanto interesse, o eleitorado seria bem menos moralista com um prefeito que se casasse pela segunda vez, pintasse o cabelo ou melhorasse a qualidade de seus ternos. Mas durante muitos séculos, as mulheres só existiram socialmente em razão dos atributos do corpo. Mulheres dependiam da beleza para que os homens as tomassem como esposas; e da maternidade, que dignificava a sua condição.
Talvez a beleza e a felicidade amorosa, dissociadas da "sagrada vocação" da maternidade, em uma mulher que ainda por cima se aproxima dos 60 anos de idade, tenham sido demais para os eleitores e eleitoras paulistanos. Imaginar que quem manda é o marido, pode representar não um temor, mas um desejo. Um modo de torná-la menos temível, menos poderosa; pelo menos nesse aspecto, ela seria "como as outras". O agravante, para os preconceituosos, é que o marido é um argentino.


Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise" (Companhia das Letras), entre outros

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