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ANÁLISE
E ainda por cima, mulher!
MARIA RITA KEHL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lula disse uma vez que o preconceito só pega em quem está
vulnerável. Isso foi em 1994,
quando Ruth Escobar teria dito, e
Jabor escreveu, que um segundo
turno entre Fernando Henrique e
Lula era uma disputa entre o filósofo e o encanador. "Mas o Brasil
está precisando mais de um encanador do que de um filósofo", respondeu Lula e perdeu a eleição.
Mas não perdeu a pose.
Recordo o episódio para tentar
entender por que, nesta eleição
municipal, os preconceitos atingiram tão em cheio a imagem de
Marta Suplicy a ponto de a porcentagem de votos da atual prefeita de São Paulo ter sido mais baixa
do que o índice de aprovação de
sua administração.
São preconceitos contra uma
mulher no poder, denunciou
Marta. O que não diz grande coisa. A beleza, a "sensibilidade" e
outras fantasias do senso comum
a respeito das qualidades femininas também abrem portas e facilitam o caminho de mulheres que
saibam se aproveitar disso. Acreditar que alguém, por ser mulher,
tem mais qualidades para administrar uma cidade do que um homem também é uma opinião
preconceituosa.
Mas a complexa combinação de
suas virtudes públicas e "vícios"
(aspas necessárias) privados,
"with a litle help" da imprensa
quase toda ela serrista, não favoreceu a prefeita nesta eleição. Ouvi gente dizendo que jamais votaria em Marta "depois do que ela
fez com o pobre Eduardo". Ouvi
todos os tipos de fantasias e fofocas grosseiras a respeito do casamento com Luis Favre. Uma insólita associação com a nacionalidade de Favre produziu em alguns a
convicção absurda de que Marta
Suplicy estaria se transformando
em uma Evita brasileira! E acima
de tudo ouvi da boca de inúmeras
mulheres declarações de antipatia
e rejeição pela imagem da prefeita, seu guarda roupa, o botox, o
penteado, o jeito de falar, a suposta arrogância nos enfrentamentos
pesados.
Nada disso fala da competência
administrativa de Marta e sua
equipe de governo. Mas os traços
de sua aparência e os detalhes de
sua vida pessoal foram mais decisivos para derrubá-la do que as
críticas aos aspectos falhos de sua
administração. Talvez Marta tenha cometido dois pecados imperdoáveis para uma mulher em
posição de poder: primeiro, não
fez mistério a respeito de sua nova
vida amorosa, permitindo mesmo um certo exibicionismo em
torno de seu casamento e de sua
felicidade. Segundo, como mulher apaixonada, dedicou-se demais aos cuidados com o corpo, o
rosto, com o figurino às vezes chique demais para quem exerce o
mais importante cargo público
em uma cidade com tanta pobreza, como é São Paulo.
Em um homem, esses detalhes,
pois são detalhes, não chamariam
tanta atenção. A imprensa não teria tanto interesse, o eleitorado seria bem menos moralista com um
prefeito que se casasse pela segunda vez, pintasse o cabelo ou melhorasse a qualidade de seus ternos. Mas durante muitos séculos,
as mulheres só existiram socialmente em razão dos atributos do
corpo. Mulheres dependiam da
beleza para que os homens as tomassem como esposas; e da maternidade, que dignificava a sua
condição.
Talvez a beleza e a felicidade
amorosa, dissociadas da "sagrada
vocação" da maternidade, em
uma mulher que ainda por cima
se aproxima dos 60 anos de idade,
tenham sido demais para os eleitores e eleitoras paulistanos. Imaginar que quem manda é o marido, pode representar não um temor, mas um desejo. Um modo
de torná-la menos temível, menos
poderosa; pelo menos nesse aspecto, ela seria "como as outras".
O agravante, para os preconceituosos, é que o marido é um
argentino.
Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora de "Sobre Ética e Psicanálise"
(Companhia das Letras), entre outros
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