São Paulo, segunda-feira, 02 de janeiro de 2006

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ENTREVISTA DA 2ª

GABRIEL PALMA

Especialista em desindustrialização, professor de Cambridge considera política econômica "histérica" e "suicida"

Juros altos e câmbio destroem indústria, afirma economista

FERNANDO CANZIAN
DA REPORTAGEM LOCAL

O economista Gabriel Palma, professor de economia da Universidade de Cambridge, no Reino Unido, qualifica como "histérica" a política econômica do governo Lula e afirma que mesmo a atual fase de fraco crescimento do país não é sustentável.
"O crescimento brasileiro não é somente pequeno, mas basicamente influenciado por aspectos transitórios", diz.
Estudioso dos processos de desindustrialização em países em desenvolvimento, Palma afirma que a indústria brasileira está sendo "destruída" por uma política monetária "suicida".
"No final dos anos 70, um terço do PIB brasileiro vinha da indústria manufatureira. Hoje, não chega aos 20%. Isso é um massacre, não tem outro nome, pois é exatamente essa indústria que poderia dar sustentabilidade a um crescimento de longo prazo", diz.
Palma critica a manutenção da dos juros básicos da economia em patamares próximos a 20% e afirma que 10% teriam o mesmo efeito. O resultado das altas taxas é o comprometimento de valor equivalente a 8% do PIB com o pagamento da dívida interna.
Na opinião de Palma, "nada" poderá ser feito no Brasil sem "algum tipo de ajuste" nesse endividamento. O economista propõe a conversão da dívida interna pública em títulos que sejam negociados no mercado -que atribuiria aos papéis um "valor real".
Outro caminho apontado por Palma é a venda de grandes ativos estatais, como Itaipu e Petrobras, e a utilização dos recursos arrecadados exclusivamente no pagamento da dívida interna.
O professor de Cambridge, que deu aula para o secretário-executivo do Ministério da Fazenda, Murilo Portugal, afirma que a atual equipe econômica tem "aversão enorme a riscos e um abandono absoluto de tudo o que tenha a ver com políticas de crescimento".
Leia entrevista telefônica de Palma à Folha, do Chile, onde nasceu e está passando férias:
 

Folha - Na comparação com outros mercados emergentes, o Brasil tem apresentado taxas de crescimento muito menores, mesmo diante da Argentina e Venezuela. O que o país poderia estar fazendo de diferente ainda que mantendo o compromisso do ajuste fiscal?
Gabriel Palma
- O pouco crescimento que o Brasil está experimentando nesse momento é basicamente produto do atual boom dos preços de matérias-primas.
O mais provável é que esse seja um processo transitório, que volte a níveis normais rapidamente. Portanto, o crescimento do Brasil não é somente pequeno, mas basicamente influenciado por aspectos transitórios. Não é um crescimento sustentável.
Há uma grande diferença entre o que o Brasil vem fazendo e o que fizeram as economias asiáticas durante a sua integração na globalização.
O básico é que há no Brasil uma dissociação entre o que se entende por política econômica para equilíbrio macroeconômico e políticas para o crescimento.
Um exemplo: nenhum país do sudeste asiático permitiria que o real se valorizasse tanto quanto se valorizou no Brasil. Isso não existe.
Nenhum país teria as taxas de juros que tem o Brasil e nenhum país falaria o que o (ministro da Fazenda Antonio) Palocci vem defendendo, um corte unilateral das tarifas de importação.
No sudeste asiático, nenhuma política econômica se concentra apenas no equilíbrio fiscal ou na balança de pagamentos. Tudo é balizado desde o prisma do crescimento.
O governo brasileiro abandonou esta visão ao adotar o projeto básico do "consenso de Washington", que é manter todas as contas equilibradas e deixar a economia no piloto automático.
Não é que o Brasil tenha se esquecido do crescimento, mas pensa que ele nasce de forma relativamente espontânea quando se tem equilíbrio fiscal, monetário e na balança de pagamentos. Nenhum país do mundo cresceu dessa forma.

Folha - No caso brasileiro, há uma espécie de obsessão da atual equipe econômica com metas muito apertadas de inflação, fruto de um histórico de quase hiperinflação que de fato dominou o país. É uma preocupação exagerada?
Palma
- O que acontece com a equipe econômica no Brasil é muito comum também em vários países: sempre estão lutando a batalha de ontem. Em vez de olharem para a frente, olha-se para trás. Se formos falar em pressões inflacionárias, estamos falando de 5% (ao ano), 8% ou no máximo 10%. O perigo de uma hiperinflação é baixíssimo ou inexistente.
No entanto, a política monetária é de pânico diante de qualquer pressão inflacionária, por mais pequena que seja.
Isso é típico de governos de esquerda, que entram em pânico diante de qualquer sintoma de crise econômica. É uma obsessão por evitar qualquer coisa que possa ser o indício de uma crise.
A sensação que tenho é a mesma no caso brasileiro, onde o governo quer ser encarado como sério, eficiente e pragmático. Mas a forma de entender isso é que acabam se tornando mais santos que o próprio papa.
No governo Fernando Henrique Cardoso, por exemplo, a política de Armínio Fraga (ex-presidente do Banco Central) era muito mais relaxada que a atual. O BC atual deu um grande passo atrás em relação à maneira como Fraga operava.
Encaro o problema das taxas de juro de modo muito simples : a mágica do Alan Greenspan (presidente do BC americano) foi convencer o mercado de que a única coisa que importa na política monetária é se as taxas de juro vão subir ou cair. Se vão subir de 3% para 4%.
A questão é a mesma no caso do Brasil, mas o país ficou estagnado em uma taxa ao redor de 20%.
No passado recente, a cada crise externa não a aumentava em 5, mas em 20 pontos percentuais de uma vez. Isso é uma loucura, pois o mercado se acostumou que a cada problema a taxa deve subir no mínimo muitos pontos. Isso é uma política monetária histérica, absolutamente desnecessária.

Folha - Como o sr. vê as opiniões de alguns que afirmam que a taxa real de juros no Brasil nunca poderá ser baixa em função do alto endividamento interno?
Palma
- Nunca ninguém conseguiu me explicar a razão pela qual o Brasil deve ter um tipo de política monetária que não encontramos em nenhum outro lugar do mundo.
Ficou consolidada uma opinião de que a taxa deve se mover ao redor dos 20% ao ano quando teria o mesmo efeito se estivesse ao redor dos 10%.
Isso é absolutamente suicida, pois significa que o Brasil queima 8% de seu PIB (Produto Interno Bruto) para remunerar a sua dívida interna.
A dívida interna do Brasil em relação ao PIB (hoje na faixa de 52%) não é certamente maior que a em vários países desenvolvidos e outros em desenvolvimento. Isso não justifica as taxas de juro praticadas no Brasil.

Folha - Nesse quadro, como o sr. vê também a falta de uma política industrial abrangente no país?
Palma
- Antes de falar em política industrial, creio que as políticas monetária e cambial estão destruindo a indústria brasileira. O pior é que essa mudança cambial é temporária, e o país acaba forçando toda a sua economia a se ajustar a algo passageiro.
No final dos anos 70, um terço do PIB brasileiro vinha da indústria manufatureira. Hoje, não chega aos 20%. Isso é um massacre, não tem outro nome, pois é exatamente essa indústria que poderia dar sustentabilidade a um crescimento de longo prazo.

Folha - O sr. acredita que o atual governo, mesmo que tardiamente, está enxergando isso e tenta agora correr atrás do prejuízo? As recentes intervenções do BC no câmbio e o processo de redução de juros não vão nesse caminho?
Palma
- Claro que qualquer movimento nessa direção é positivo, mas tudo é demasiado tímido e lento. Qualquer taxa de câmbio abaixo de R$ 3 por dólar é absurda, assim como também é absurda qualquer taxa de juro maior do que 10%. Há muito caminho pela frente para se chegar a isso.
O Brasil também precisa entender que a economia internacional está muito instável.
Não é pouco provável que o dólar tenha um problema sério no curto prazo, por conta dos déficits comercial e fiscal dos Estados Unidos. Nesse cenário, uma economia tão aberta financeiramente como a brasileira é ainda muito vulnerável.

Folha - O sr. tem familiaridade com o político José Serra?
Palma
- Muita. Eu o conheço muito bem.

Folha - O sr. acredita que, na Presidência, Serra mudaria radicalmente a atual política?
Palma
- Creio que José Serra seja um dos poucos economistas brasileiros que nunca se deslumbraram com o neoliberalismo.
É um dos poucos economistas que têm os pés no chão e que entendem o papel da indústria manufatureira em políticas de crescimento sustentável. Nesse sentido, creio que se ele vier a ser presidente, a política não será tão ortodoxa.
O problema é que qualquer presidente terá de governar com partidos políticos diversos.
O drama brasileiro é que vocês nunca conseguiram fazer uma grande coalizão política unindo PT e PSDB.

Folha - Como o sr. avalia a capacidade da atual equipe econômica?
Palma
- Ela tem uma aversão a riscos que eu qualificaria como quase neurótica. Conheço muita gente da atual equipe, inclusive o Murilo Portugal (secretário-executivo do Ministério da Fazenda), que foi meu aluno em Cambridge. Todos têm uma aversão enorme a riscos e um abandono absoluto de tudo o que tenha a ver com políticas de crescimento.
Essa obsessão pelo equilíbrio fiscal e a política monetária vão continuar forçando o Brasil a seguir por esse caminho de crescimento medíocre, com a destruição de sua indústria.
Além do mais, não há nada que possa ser feito com o Brasil sem algum tipo de ajuste em sua dívida interna.

Folha - O sr. é a favor do calote?
Palma
- No caso da dívida interna isso é politicamente muito mais difícil, pois trata-se do dinheiro da classe média.
Eu sugeriria duas coisas: a conversão da dívida interna pública em títulos que flutuassem no mercado, para que esse mercado lhe atribuísse um valor real. Um valor real para algo que pudesse de fato ser pago, porque a atual dívida é uma mentira, posto que é impagável.
A outra coisa é que o Brasil ainda tem ativos muito grandes, como a Petrobras ou Itaipu, por exemplo, que poderiam ser vendidos para o abatimento dessa dívida interna.
Mas que os recursos fossem usados exclusivamente para isso e levando em conta um valor real para a atual dívida.
É fácil dizer, mas sem uma grande coalizão política, isso é impossível de ser feito.


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