São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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NO PLANALTO

Em crise, jornalismo vira profeta do acontecido

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

As corporações jornalísticas cometeram na última década dois relevantes equívocos: 1) difundiram a tese de que a adesão do Brasil ao consenso liberal era prenúncio de prosperidade; 2) acreditaram no devaneio.
A indústria da informação tirou do noticiário que produziu as suas próprias confusões. Crente na perspectiva de bonança, traçou planos expansionistas. Contraiu empréstimos em dólar. Plantou em seus balanços encrencas milionárias. Colhe agora a tempestade.
Vítima de si mesma, a mídia virou notícia. O setor atravessa uma crise sem precedentes. Talvez a maior dos últimos 50 anos. Com o destino atado a um iminente socorro financeiro do BNDES, a maioria das empresas de comunicação encontra-se exilada de suas certezas. O consenso econômico em decomposição é o incômodo local desse exílio.
Nós, mercadores da informação, devemos à clientela uma boa explicação. Consumidores mais atentos já se perguntam: por que acreditar em produtores de notícias que não foram capazes de iluminar o próprio futuro?
A embaraçosa verdade é que o jornalismo se eximiu nos últimos anos da tarefa de expor adequadamente as contradições do modelo único. Limitou-se a reproduzir, de modo acrítico, a atmosfera de oba-oba e contemplação em que se processou o debate econômico. Escassos opositores da nova ordem foram tratados como chatos que queriam estragar a festa.
A antecipação de tendências é hoje matéria-prima escassa no noticiário. O poder decisório migrou da esfera pública para a arena privada. Numa velocidade que os meios de comunicação não conseguiram acompanhar.
Houve um tempo em que o Brasil era governado por três Poderes: Exército, Marinha e Aeronáutica. Num processo iniciado sob Sarney, tonificado sob Collor, consolidado sob FHC e mantido sob Lula, o país passou a ser comandado pelo poder monocrático do mercado.
Mercado sem rosto e disperso. Que pode estar num gabinete de Washington, numa corretora de Nova York, ou num escritório da avenida Paulista.
O "Poder" Executivo perdeu a primazia regulatória. Limita-se a chancelar decisões ditadas de fora. O "Poder" Legislativo virou peça de ornamento. A dissecação desse fenômeno é, no momento, o maior desafio da imprensa.
A ruína da utopia soviética e a conseqüente disseminação planetária do liberalismo produziram uma falsa impressão de "fim da história". A atmosfera ficou impregnada de otimismo.
Imaginou-se que, em países periféricos como o Brasil, um Estado renovado e enxuto daria vazão a demandas históricas da sociedade. Regularia o mercado e proveria, finalmente, distribuição de renda, saúde, educação, segurança etc.
Livre de amarras e sem a concorrência do Estado-empresário, a fome do lucro moveria o mercado, que beneficiaria a sociedade, que seria conduzida ao paraíso. Porém, a "nova história" farejada por Fukuyama foi sendo gradativamente desmentida pelos fatos.
O paraíso existe. Mas é para poucos, tem muros mais altos e dispõe de guaritas guarnecidas por armas cada vez mais sofisticadas. Vive-se uma festa liberal para a qual a maioria excluída ainda não foi convidada.
Até ontem, havia meia dúzia de esquerdistas guerreando atrás de barricadas. Não há mais. Eleitos, Lula e o ex-PT aderiram ao modelão. Não comem mais criancinhas. Dedicam-se agora à jardinagem. Plantam estrelas vermelhas no chão do Alvorada e do Torto.
Estuário natural da história em construção, os meios de comunicação amargam cortes orçamentários que reduzem a sua capacidade de observação. Os fatos são acompanhados de forma burocrática e convencional. Concentram-se os escassos esforços investigatórios nos gabinetes do Estado.
Movimentos decisivos só são captados pelo jornalismo contemporâneo em sua fase terminal. Ignora-se com freqüência a etapa de formulação das decisões, comandada por um mercado desgovernado e rendido à lógica externa.
Ou os meios de comunicação se qualificam para a cobertura desse núcleo decisório que se sobrepõe ao Estado, ou serão condenados ao mero relato de fatos consumados. Perderão de vez o sentido utilitário.
Num cenário de interesses voláteis e difusos, a imprensa não consegue fixar âncoras de referência. No instante em que leitores e telespectadores buscam a luz que deixou de brilhar em seus túneis particulares, o jornalismo converte-se em mero profeta do acontecido.


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