São Paulo, domingo, 02 de julho de 2006

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ELEIÇÕES 2006/IMAGEM

Retórica getulista de Lula divide analistas

Presidente busca sedimentar imagem de "pai dos pobres" em discursos, mas semelhanças com Vargas são contestadas

Pesquisadores vêem gesto consciente de aproximação com Vargas, mas apontam diferença entre trabalhismo e práticas assistencialistas

Flávio Florido - 11.jan.2006/Folha Imagem
O presidente Lula cumprimenta moradores de Itinga, em visita à cidade mineira em janeiro


RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem procurado deliberadamente se associar à máxima figura de liderança popular que o país já conheceu, a de Getúlio Vargas, dizem analistas ouvidos pela Folha.
Fazem isso -Lula e seus assessores- ao lançarem mão de fórmulas similares de discurso, ao apresentarem o presidente como modelo contemporâneo de "pai dos pobres", ao procurarem a associação constante de Lula a símbolos "varguistas" como a Petrobras e ao lançarem o bordão de campanha "Lula de novo, nos braços do povo" -afinal, quem primeiro voltou "nos braços do povo" ao poder foi Vargas, em 1950.
"É consciente", diz Maria Celina D'Araujo, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas do Rio e uma das maiores especialistas na trajetória de Vargas e em seus períodos na Presidência no país. "Lula está copiando Getúlio naquilo em que ele foi mais eficiente para conseguir popularidade. Está se apropriando de uma estratégia que deu certo para o Getúlio e que, por enquanto, está dando certo para ele também."
Nesse ponto específico, ela está de acordo com a opinião do professor emérito de ciência política da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Fábio Wanderley Reis, que afirma: "Seria surpreendente se Lula estivesse reproduzindo o discurso de Vargas de maneira tão semelhante sem estar consciente. Deve haver um elemento intencional".
Em discurso na semana que passou, o presidente falou de seu prazer em "cuidar" dos mais pobres: "Seria tão mais fácil a gente governar se tivéssemos que cuidar só dos pobres. Os pobres não dão trabalho, por isso por muito tempo ficaram esquecidos".
A parte não calculada, mas significativa e que se traduz em resultados reais na distribuição de renda do país -o que, por sua vez, dá sustentação ao discurso redivivo de "pai dos pobres"-, é a coincidência quase exata de valores do salário mínimo em 1º de julho do ano de sua criação, 1940, em São Paulo (o mínimo tinha então valores diferentes para diferentes regiões), e seu valor atual.
Segundo cálculo realizado pelo economista Marcelo Neri, da FGV-RJ, o mínimo de então, convertido para valores de hoje, representava R$ 351,88 -quase nada a mais que os R$ 350 atuais, alcançados sob Lula. Parte da série histórica do mínimo em valores atuais produzida por ele e pela FGV estão apresentados nesta página.

Renda cresceu
Reportagem publicada na Folha no último dia 11 de junho mostrava que, entre 2001 (ainda no governo Fernando Henrique Cardoso) e 2004, os 10% mais miseráveis do país viram sua renda subir 23,3%. Os 20% mais pobres, cerca de 15%.
A causa de tal crescimento "chinês" da renda está em programas como o Bolsa-Família, mas também nos reajustes do salário mínimo acima da inflação no governo petista.
Apesar dessa coincidência "salarial" entre Lula e Vargas e da concordância de Araujo e Reis na busca do presidente por identificação com o líder trabalhista, há divergências entre os analistas ouvidos pela Folha sobre as possibilidades de comparação real entre os dois.
Para Araujo, as semelhanças param nos discursos, no uso do carisma popular e na construção da imagem de "pai dos pobres". Já Reis afirma que a aproximação entre os dois não se funda apenas no simbolismo e na capacidade de relação direta com o eleitorado, mas parte também de políticas reais -como o Bolsa-Família e a elevação significativa do valor do salário mínimo- que seriam os equivalentes contemporâneos, guardadas as proporções, de políticas inclusivas realizadas na era Vargas -como a criação da legislação trabalhista.
O sociólogo Francisco de Oliveira, no entanto, vê diferenças radicais entre os dois líderes, e trata como "sociologia barata" a aproximação de um e de outro com base no argumento de que ambos teriam traços "populistas". "Vargas foi um autoritário que incluiu o proletariado na política. Lula é um democrata que exclui o proletariado da política", sintetiza o professor emérito da USP.

Exclusão
A tal "exclusão" realizada por Lula, segundo o sociólogo, se dá justamente por meio de seu programa mais cacifado eleitoralmente, o Bolsa-Família. Se a legislação trabalhista criava direitos novos para a maioria da população, a complementação de renda atual não passaria de "benesse" sujeita às contingências do Orçamento. "Quando ele faz o assistencialismo, ele exclui o proletariado, que não é mais sujeito, mas objeto da política", diz Oliveira. No modelo da Previdência Social, por outro lado, defende o sociólogo, os trabalhadores têm reconhecido um direito que pode ser cobrado politicamente.
Oliveira concede, porém, que há um elemento de aproximação entre Lula e Vargas no fato de ambos "trabalharem numa espécie de vazio político em que as instituições não representam os trabalhadores" -o que pode ser traduzido pela relação direta do presidente com os mais pobres, sem intermediação ou identificação partidária. A diferença, no entanto, está no fato de que Vargas travava essa comunicação com o "povo" pela inexistência de partidos que representassem os trabalhadores no momento que se seguiu à Revolução de 30. No caso de Lula, o momento é outro, justamente o da implosão dos partidos e de sua capacidade de representação, defende Oliveira. Se um está no nascimento da representação política partidária, o outro fala depois de seu fim.
Araujo também vê distinções claras -de personalidade e governo- entre Lula e Vargas. "Getúlio tinha um projeto de nação. Não era um democrata, mas era um estadista. Tinha noção do seu papel, da sua autoridade. Era, mesmo, um homem distante. E Lula, ao contrário, é uma pessoa que vai até a batizado de boneca. Muito mais acessível, sempre dando palpite sobre tudo", ela diz.
Para a historiadora, por outro lado, o atual presidente é claramente um democrata. "Se não tem a estatura de estadista, tem uma biografia muito mais associada à democracia."
É Fábio Wanderley Reis quem vê aproximações maiores, inclusive no plano das realizações. Cita como fator de aproximação, no caso de Lula, "a política de cunho social, que, com todas as críticas, tem efeitos reais, como mostram os dados" que apontam redução da desigualdade no país sob o governo do petista.


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