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ENTREVISTA/LESTER BROWN
"Biocombustíveis são maior ameaça à diversidade na Terra"
Pioneiro no movimento ambientalista prevê "disputa épica" entre os 800 milhões de donos
de carros e os 2 bilhões mais pobres do planeta com a produção de álcool a partir de grãos
A AMBIÇÃO BRASILEIRA de criar um mercado mundial para o álcool em parceria com
os EUA encontrou um opositor de peso em
um dos pioneiros do movimento ambientalista: o americano Lester Brown, 72, com influência
suficiente para ser ouvido no Congresso dos EUA, no
Fórum Econômico Mundial ou na Academia de Ciências da China. Ele diz que o uso do milho por usinas de
álcool desencadeou uma disputa de proporções épicas
entre os 800 milhões de donos de carros e os 2 bilhões
de pessoas mais pobres do planeta.
CLÁUDIA TREVISAN
DA REPORTAGEM LOCAL
O aumento da demanda por
milho para fabricação de álcool
tem levado à inflação de alimentos em todo o mundo, diz
Brown, com efeitos perversos
para a população mais pobre.
A posição é semelhante à do
ditador cubano Fidel Castro e
do presidente venezuelano,
Hugo Chávez, que vêem nos
biocombustíveis uma ameaça à
oferta de alimentos no mundo.
A tecnologia brasileira de fabricação de álcool a partir da
cana-de-açúcar não escapa das
críticas do ambientalista. "Se
eu tivesse que identificar a mais
importante ameaça à diversidade biológica da Terra, ela seria a demanda crescente por
biocombustíveis", disse Brown
em entrevista por telefone.
O ambientalista afirma que a
Terra não terá como acomodar
milhões de chineses com o
mesmo padrão de consumo dos
norte- americanos. Se crescer a
8% ao ano, afirma, a China terá
em 2031 renda per capita igual
à dos Estados Unidos hoje.
Caso os chineses do futuro
consumam como os americanos de hoje, o país asiático terá
1,1 bilhão de carros em 2031,
mais que os 800 milhões existentes hoje no mundo. Para alimentar sua frota e seu crescimento, precisará de 99 milhões de barris de petróleo/dia, mais
que a produção mundial atual,
de 85 milhões de barris/dia.
FOLHA - O sr. tem uma posição distinta da maioria dos ambientalistas
em relação ao uso do álcool como
combustível. Por quê?
LESTER BROWN - Muitos ambientalistas estão mudando de posição em relação a essa questão.
O cenário de um ano atrás não
é mais o mesmo hoje, pelo menos não nos Estados Unidos. Se
utilizarmos quantidades crescentes de grãos para dar combustível aos carros, isso levará
à alta no preço de alimentos e
será uma ameaça à população
mais pobre do planeta.
Os ambientalistas estão retirando apoio ao álcool e falando
em carros híbridos [movidos a
gasolina e eletricidade] que podem ser recarregados em uma
tomada, vistos cada vez mais
como a solução para os Estados
Unidos. O Toyota Prius é o carro híbrido mais popular nos
Estados Unidos.
Se for agregada a ele uma segunda bateria com tomada, será possível recarregá-la à noite
em casa. Com isso, os percursos de curta distância seriam
realizados totalmente com eletricidade. Se fizermos isso nos
Estados Unidos, poderemos reduzir nosso consumo de petróleo em cerca de 80%.
Se, ao mesmo tempo, investirmos em centenas de usinas
eólicas [movidas a vento], agregaríamos energia barata à nossa rede de transmissão, o que
nos permitiria ter energia equivalente a um galão de gasolina
por US$ 1. Está surgindo uma
grande coalização entre companhias de eletricidade, corporações, ambientalistas e governos municipais e estaduais para encorajar a adoção desse caminho.
FOLHA - O sr. fala em um "confronto épico" entre os 800 milhões que
têm carros e as 2 bilhões de pessoas
mais pobres do mundo, que vêem
os preços dos alimentos subirem. Os
vencedores desse confronto, pelo
menos até agora, parecem ser os
800 milhões de motorizados, considerando os pesados investimentos
na produção de álcool.
BROWN - Por enquanto, os 800
milhões têm sido vitoriosos,
porque houve enormes investimentos em usinas de álcool nos
Estados Unidos. A capacidade
de produção em construção é
maior que a capacidade de todas as usinas criadas desde o
início do programa [de fabricação de álcool], em 1978.
Até o fim do próximo ano,
quase 30% da colheita de grãos
irá para usinas de álcool, reduzindo a quantidade disponível
para exportações. Como o
mundo depende fortemente
dos Estados Unidos, que é um
dos maiores exportadores de
milho e de trigo, isso vai criar
problemas graves aos importadores de grãos, como Japão, Índia, Egito, Nigéria, México.
FOLHA - A recente inflação nos preços de alimentos no mundo pode ser
atribuída ao álcool?
BROWN - Há outros fatores, como falta de água, mas a causa
principal da inflação nos últimos seis meses tem sido o aumento no preço de grãos. Isso
ocorre em todos os lugares do
mundo: no preço do porco na
China, da tortilha no México,
da cerveja na Alemanha.
FOLHA - Com tantos investimentos
no setor, é possível uma reversão no
uso de álcool nos Estados Unidos?
BROWN - Ninguém sabe. O que
começamos a ver é uma reação
dos consumidores. Estamos
em uma situação inusual, na
qual subsidiamos a alta do preço de alimentos. Como contribuintes, estamos dando os subsídios que vão para a produção
do álcool. Perdemos nas duas
pontas, como contribuintes e
como consumidores.
FOLHA - Além disso, a produção de
álcool com milho é pouco eficiente.
BROWN - Sim, especialmente
se comparado ao álcool produzido por cana-de-açúcar. Para
cada 1 unidade de energia usada na produção de álcool a partir do milho, é obtida 1,3 unidade de energia, o que dá um ganho de 30%. No caso da cana-de-açúcar, para cada 1 unidade
de energia utilizada, são obtidas 8 unidades de energia.
FOLHA - O álcool produzido a partir
da cana-de-açúcar é uma opção viável aos combustíveis fósseis?
BROWN - Poderia ser nos países
que podem plantar cana-de-açúcar. Nós não podemos plantar muito, porque estamos no
hemisfério Norte. Mas, se países que já são grandes produtores, como o Brasil, tentarem satisfazer não apenas seu mercado interno mas também exportar, haverá desmatamento, pela
expansão da produção de cana-de-açúcar ou porque a expansão da cana toma espaço de outras culturas, como soja [que ocupariam outras áreas].
A preocupação que está
emergindo na comunidade internacional de ambientalistas
em relação aos biocombustíveis é o efeito que eles estão
tendo no desmatamento na
Amazônia brasileira e no sudeste asiático, onde Malásia e
Indonésia são os principais
produtores de óleo de palmeira, que é usado como biodiesel.
Se eu tivesse que identificar a
mais importante ameaça à diversidade biológica da Terra,
ela seria a demanda crescente
por biocombustíveis -álcool
no caso do Brasil ou biodiesel
no caso do sudeste asiático.
Eu não diria que o Brasil deve
interromper sua produção de
álcool. A minha sugestão é que
o Brasil comece a desenvolver
outras fontes de energia, incluindo a solar e a eólica, em
que tem grande potencial.
FOLHA - A China acaba de superar
os Estados Unidos como o maior
emissor de gases de efeito estufa. A
Terra é grande o bastante para acomodar os milhões de emergentes
consumidores chineses?
BROWN - Eu sempre escutei
que os Estados Unidos, apesar
de terem apenas 5% da população mundial, consumiam quase
40% dos recursos da Terra. Isso
não é mais verdadeiro.
A China hoje consome mais
da maioria dos recursos básicos
do que os Estados Unidos, com
exceção de petróleo. O consumo de carne da China hoje é o
dobro do registrado nos Estados Unidos. O de aço é o triplo.
O que acontecerá se a China
alcançar os Estados Unidos em
consumo per capita? Se o crescimento chinês se reduzir para
8% ao ano, em 2031 a renda per
capita da China será a mesma
da dos Estados Unidos hoje
[com valores ajustados pela Paridade do Poder de Compra].
Se os chineses tivessem o
mesmo padrão de consumo dos
americanos, em 2031 a população de 1,4 bilhão ou 1,5 bilhão
da China consumiria o dobro
da atual produção de papel de
todo o mundo. Se houver três
carros para cada grupo de quatro pessoas, como nos Estados
Unidos hoje, a China teria 1,1
bilhão de carros. Em todo o
mundo hoje há 800 milhões. O
consumo de petróleo seria de
99 milhões de barris ao dia. A
produção atual de petróleo é de
85 milhões de barris por dia.
O que a China está nos ensinando é que o modelo econômico ocidental, centrado em
combustíveis fósseis, no uso de
carros e no desperdício, não vai
funcionar para o país. Se não
funcionar para a China, não vai
funcionar para a Índia, que em
2031 deverá ter uma população
maior que a da China. Há 3 bilhões de pessoas nos países em
desenvolvimento sonhando o
sonho americano.
FOLHA - A questão é essa: todos sonham o sonho americano.
BROWN - Sim, e em uma economia cada vez mais integrada, na
qual todos nós dependemos
dos mesmos grãos, petróleo e
aço, esse modelo também não
vai funcionar para os países industrializados. O que temos
que fazer é pensar em uma nova economia, com fontes renováveis de energia, que tenha um
sistema de transporte diversificado e que reúse e recicle tudo.
FOLHA - Há disposição entre os líderes chineses para mudar o padrão
de desenvolvimento do país?
BROWN - Eles publicam quase
tudo o que eu escrevo. O primeiro-ministro Wen Jiabao
começou a me citar em alguns
de seus discursos. As coisas
mais estimulantes que aconteceram em energia renovável
nos últimos anos aconteceram
na China. Até o fim deste ano,
40 milhões de casas terão água
aquecida por energia solar, captada por painéis colocados nos
telhados das casas, e o número
deve quadruplicar até 2020.
FOLHA - É possível para a China
mudar o padrão de desenvolvimento e caminhar na direção de fontes
renováveis de energia sem sacrificar
o crescimento econômico?
BROWN - Se não reestruturarmos a economia mundial, o
crescimento econômico será
insustentável. Precisamos
reestruturar a economia muito
mais rapidamente do que a
maioria das pessoas imagina.
Os números que mencionei
sobre a China como nação consumidora se referem a 2031,
quando eles estariam consumindo mais recursos do que o
mundo possui.
Se não reestruturarmos a
economia no mundo, o progresso econômico provavelmente não se sustentará.
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