São Paulo, domingo, 02 de agosto de 2009

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RÉPLICA

Modelos pandêmicos

HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O OMBUDSMAN Carlos Eduardo Lins da Silva excedeu-se na semana passada ao classificar a reportagem sobre o modelo matemático do Ministério da Saúde para pandemias de gripe publicada em 19/7 como "um dos mais graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde abril de 2008".
O texto criticado pelo ombudsman é correto. Afirma que o estudo do ministério existe e foi publicado em 2006 por temor de uma pandemia provocada pelo vírus A (H5N1) que circula entre aves. Só que tanto na ocasião como agora não existe um H5N1 pandêmico, de modo que os parâmetros epidemiológicos do vírus (dados como taxa de infecção, taxa de complicação, taxa de óbito que alimentam o modelo) são desconhecidos.
Diante disso, o ministério elaborou um trabalho no qual simulou mil combinações de parâmetros e delas extraiu o melhor e o pior cenário possíveis para a próxima pandemia de gripe no Brasil. Os resultados são os que saíram no jornal. No melhor caso, 35 milhões de infectados. No pior, 67 milhões.
Se o estudo foi bem feito, como parece que foi, ele serve para toda e qualquer pandemia de gripe, não importando o agente etiológico que a cause. Se for uma cepa pouco virulenta, materializa-se algo perto do cenário mais benigno; se for uma linhagem mais agressiva, é a hipótese mais catastrófica que ganha corpo.
Esse tipo de exercício, uma recomendação da Organização Mundial da Saúde, é comum em vários países e noticiá-los não é considerado erro jornalístico. Para os CDCs (vigilância epidemiológica dos EUA), sem medidas efetivas de controle e vacinação, uma pandemia de nível médio poderia afetar entre 15% e 35% da população e matar entre 89 mil e 207 mil americanos. No caso extremo, os doentes chegariam a 200 milhões (65%) e os óbitos ficariam entre 100 mil e 500 mil.
É claro que o novo vírus H1N1, por existir e estar circulando, é um pouco menos desconhecido do que o vírus genérico dos modelos. O principal artigo científico até aqui publicado sobre os parâmetros epidemiológicos do H1N1 é "Pandemic potential of a strain of Influenza A (H1N1): early findings", de Christophe Fraser, que saiu na "Sciencexpress" (versão eletrônica da "Science") em maio. O estudo estabelece uma taxa de ataque clínico (infecção sintomática) de 30%. A letalidade medida ficou em 0,4% (variando de 0,3% a 1,5%), mas ela foi calculada com base em casos confirmados e suspeitos. Como a maioria das pessoas que pega uma gripe não vai ao médico, o denominador fica subestimado, resultando em taxas exageradas.
Cientes do problema, os epidemiologistas neozelandeses Nick Wilson e Michael Baker elaboraram um outro estudo (publicado na "Eurosurveillance") que procurou levar em conta o conjunto da população infectada. Chegaram a uma letalidade bem mais baixa, que vai de 0,06% a 0,000 4%, dependendo do método utilizado.
A título de comparação, todos os anos, a gripe sazonal infecta entre 10% e 20% da população brasileira (20 milhões a 40 milhões). Assim, o cenário de 35 milhões de doentes (17,5%) citado no texto como o mais provável é uma hipótese até conservadora para um vírus pandêmico -isto é, para o qual a maioria da população terá baixa resistência- como é o novo H1N1.
Se a reportagem cometeu alguma impropriedade técnica, foi a de ter dado mais valor às ponderações tranquilizadoras do epidemiologista Eduardo Hage, do Ministério da Saúde, do que ao dado constante da literatura. Em princípio, um trabalho publicado em revista científica indexada e com revisão por pares vale mais do que um palpite -por mais correto que ele pareça.
Autoridades sanitárias de outros países admitem sem problemas taxas ainda mais elevadas que os 17,5%. Na semana passada, por exemplo, o jornal espanhol "El País" noticiou que a secretaria de saúde da Galícia estima que de 25% a 30% da população poderá ficar doente.
No início de julho, no Reino Unido, o secretário de saúde, Andy Burnham declarou calcular que lá pelo fim de agosto o país estará diagnosticando a cada dia 100 mil novos casos de influenza por H1N1 -vale frisar o "a cada dia".
No final de junho, Anne Schuchat, dos CDCs, informava que os modelos da agência indicavam que pelo menos 1 milhão de americanos já haviam sido infectados. O primeiro caso ali foi registrado em 15 de abril. E vale observar que é verão no hemisfério norte, época pouco favorável à transmissão de vírus gripais.
Os títulos da chamada e do texto, por não comportarem tantas ponderações, talvez tenham dado para os leitores mais apressados uma impressão que não corresponde ao conteúdo da reportagem, mas essa, acredito, é uma limitação do formato jornalístico.
O ombudsman parece julgar que a função do jornal é trabalhar ao lado das autoridades para conter o pânico. Entendo essa posição, mas discordo. Nosso objetivo deve ser transmitir a informação correta e relevante, deixando que cada leitor faça com ela o que achar melhor.


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