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RÉPLICA
Modelos pandêmicos
HÉLIO SCHWARTSMAN
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
O OMBUDSMAN Carlos
Eduardo Lins da Silva
excedeu-se na semana
passada ao classificar a reportagem sobre o modelo matemático do Ministério da Saúde para
pandemias de gripe publicada
em 19/7 como "um dos mais
graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde
abril de 2008".
O texto criticado pelo ombudsman é correto. Afirma que
o estudo do ministério existe e
foi publicado em 2006 por temor de uma pandemia provocada pelo vírus A (H5N1) que
circula entre aves. Só que tanto
na ocasião como agora não
existe um H5N1 pandêmico, de
modo que os parâmetros epidemiológicos do vírus (dados como taxa de infecção, taxa de
complicação, taxa de óbito que
alimentam o modelo) são desconhecidos.
Diante disso, o ministério
elaborou um trabalho no qual
simulou mil combinações de
parâmetros e delas extraiu o
melhor e o pior cenário possíveis para a próxima pandemia
de gripe no Brasil. Os resultados são os que saíram no jornal.
No melhor caso, 35 milhões de
infectados. No pior, 67 milhões.
Se o estudo foi bem feito, como parece que foi, ele serve para toda e qualquer pandemia de
gripe, não importando o agente
etiológico que a cause. Se for
uma cepa pouco virulenta, materializa-se algo perto do cenário mais benigno; se for uma linhagem mais agressiva, é a hipótese mais catastrófica que
ganha corpo.
Esse tipo de exercício, uma
recomendação da Organização
Mundial da Saúde, é comum
em vários países e noticiá-los
não é considerado erro jornalístico. Para os CDCs (vigilância
epidemiológica dos EUA), sem
medidas efetivas de controle e
vacinação, uma pandemia de
nível médio poderia afetar entre 15% e 35% da população e
matar entre 89 mil e 207 mil
americanos. No caso extremo,
os doentes chegariam a 200 milhões (65%) e os óbitos ficariam
entre 100 mil e 500 mil.
É claro que o novo vírus
H1N1, por existir e estar circulando, é um pouco menos desconhecido do que o vírus genérico dos modelos. O principal
artigo científico até aqui publicado sobre os parâmetros epidemiológicos do H1N1 é "Pandemic potential of a strain of
Influenza A (H1N1): early findings", de Christophe Fraser,
que saiu na "Sciencexpress"
(versão eletrônica da "Science") em maio. O estudo estabelece uma taxa de ataque clínico
(infecção sintomática) de 30%.
A letalidade medida ficou em
0,4% (variando de 0,3% a 1,5%),
mas ela foi calculada com base
em casos confirmados e suspeitos. Como a maioria das pessoas que pega uma gripe não vai
ao médico, o denominador fica
subestimado, resultando em
taxas exageradas.
Cientes do problema, os epidemiologistas neozelandeses
Nick Wilson e Michael Baker
elaboraram um outro estudo
(publicado na "Eurosurveillance") que procurou levar em
conta o conjunto da população
infectada. Chegaram a uma letalidade bem mais baixa, que
vai de 0,06% a 0,000 4%, dependendo do método utilizado.
A título de comparação, todos os anos, a gripe sazonal infecta entre 10% e 20% da população brasileira (20 milhões a
40 milhões). Assim, o cenário
de 35 milhões de doentes
(17,5%) citado no texto como o
mais provável é uma hipótese
até conservadora para um vírus
pandêmico -isto é, para o qual
a maioria da população terá
baixa resistência- como é o
novo H1N1.
Se a reportagem cometeu alguma impropriedade técnica,
foi a de ter dado mais valor às
ponderações tranquilizadoras
do epidemiologista Eduardo
Hage, do Ministério da Saúde,
do que ao dado constante da literatura. Em princípio, um trabalho publicado em revista
científica indexada e com revisão por pares vale mais do que
um palpite -por mais correto
que ele pareça.
Autoridades sanitárias de outros países admitem sem problemas taxas ainda mais elevadas que os 17,5%. Na semana
passada, por exemplo, o jornal
espanhol "El País" noticiou que
a secretaria de saúde da Galícia
estima que de 25% a 30% da população poderá ficar doente.
No início de julho, no Reino
Unido, o secretário de saúde,
Andy Burnham declarou calcular que lá pelo fim de agosto o
país estará diagnosticando a cada dia 100 mil novos casos de
influenza por H1N1 -vale frisar o "a cada dia".
No final de junho, Anne
Schuchat, dos CDCs, informava
que os modelos da agência indicavam que pelo menos 1 milhão
de americanos já haviam sido
infectados. O primeiro caso ali
foi registrado em 15 de abril. E
vale observar que é verão no
hemisfério norte, época pouco
favorável à transmissão de vírus gripais.
Os títulos da chamada e do
texto, por não comportarem
tantas ponderações, talvez tenham dado para os leitores
mais apressados uma impressão que não corresponde ao
conteúdo da reportagem, mas
essa, acredito, é uma limitação
do formato jornalístico.
O ombudsman parece julgar
que a função do jornal é trabalhar ao lado das autoridades para conter o pânico. Entendo essa posição, mas discordo. Nosso objetivo deve ser transmitir
a informação correta e relevante, deixando que cada leitor faça com ela o que achar melhor.
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