São Paulo, terça-feira, 02 de setembro de 2008

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JANIO DE FREITAS

O monstro vive


"O monstro" que o general Golbery criou e depois identificou só mudou algumas formas, não morreu

A INSEGURANÇA da privacidade é total no Brasil de hoje e de alguns anos já, imprecisos embora. Ninguém, em nenhuma instância do governo ou do Judiciário -o que inclui a própria polícia, a Abin e os vários serviços secretos das Forças Armadas-, sabe quem foi e quem está sendo gravado. Além das autorizações à polícia para gravação legal, cujo montante de 407 mil já atesta o estado de desatino, as gravações são corriqueiras também em serviços oficiais sem direito de fazê-las e, ainda, nas vastas atividades clandestinas mas tacitamente toleradas pelos governos e até utilizadas por policiais, como já reconhecido. Com contrapartida de não saber quem foi gravado há, portanto, a ignorância sobre quem grava. É um mundo sem olhos e com ouvidos demais.
Uma certeza nesse mundo: toda a cúpula do governo, da Justiça e das atividades financeiras está sob pleno risco de haver deixado em gravações sigilosas, ilegais ou autorizadas, conversas que precisavam de reserva.
Ainda mais grave: ninguém pode nem sequer imaginar o material que as gravações, autorizadas ou ilegais, já recolheram e o que pode ser feito com isso. Ou melhor, com esse arsenal.
Dá uma idéia da vulnerabilidade, até mesmo por ameaça institucional, os recentes equipamentos de que a Polícia Federal está dotada (também a Abin estaria). São dispositivos capazes de gravar telefonemas sem utilizar os serviços das telefônicas, onde se fazem as conexões batizadas de "grampos". Com isso, são possíveis gravações sem a autorização judicial, à distância e em qualquer lugar.
Esses novos recursos tecnológicos, cujo alto preço não impede sua posse por particulares, faz lembrar a única referência técnica à gravação da conversa do presidente do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, com o senador Demóstenes Torres: parece uma "gravação ambiental". Como as gravações que não se fazem por intermédio das telefônicas.
Como ponto de partida para as várias investigações anunciadas (na PF, na Abin, na Câmara, no Senado), a gravação do ministro e do senador lança indagações à margem do problema de violações do recôndito pessoal. O teor da gravação dada a "Veja" não justifica a divulgação. Logo, o propósito não foi atingir Gilmar Mendes nem o STF. Pode ser contra a Abin. Mas imaginar que algum agente da Abin seja tão puro e democrata que prefira denunciar más práticas da agência, como sugere a entrega da gravação "por um agente da Abin", beira o anedótico.
São, pois, duas obscuridades: as gravações como norma disseminada e o motivo da divulgação de uma delas sem, no entanto, qualquer implicação dos gravados, mas a pretensa indicação de origem -a Abin.
Só nos últimos dois meses, foram publicados aqui pelo menos seis artigos tratando, embora não só, de gravações telefônicas e da atividade ilegal da Abin a pretexto da Operação Satiagraha ("Escuta aqui", em 15/7; "Vozes de mais e de menos", 17/7; "Trechos de um mau enredo", 20/7; "A recriação da bomba", 22/7; "Conselhos ao telefone", 27/7; "Da inação à ameaça", 7/8). Em "Trechos", sobre o aglomerado de "antiética, incompetência e tapeações chamado de Operação Satiagraha", figurou como uma realidade merecedora de atenções, por seus possíveis efeitos, a contraposição das correntes lideradas pelo atual diretor da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, e do ex-diretor e hoje diretor afastado da Abin, Paulo Lacerda.
Ex-ocupante de cargos de relevo na PF, o deputado Marcelo Itagiba mencionou ontem, como uma das possíveis raízes da entrega de uma gravação e da referência à Abin, a "disputa" entre Corrêa e Lacerda. Presidente da atual CPI das Escutas Telefônicas, Marcelo Itagiba parece ter um ponto de partida para as investigações pela Câmara, se não tiver mais. Hoje lá estará o general Jorge Felix, ministro da Segurança Institucional, a quem a Abin é subordinada. Mas a reconvocação de Paulo Lacerda, para novo depoimento, promete mais.
Em síntese, a constatação é simples: com os gravadores oficiais e os ilegais como força nacional, "o monstro" que o general Golbery criou e depois identificou só mudou algumas formas, não morreu.


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