São Paulo, segunda-feira, 02 de outubro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ENTREVISTA DA 2ª/ RENATO LESSA

PT e PSDB despolitizam campanha eleitoral

Para cientista político, ao se apresentar como "acima da política", Lula "autoriza o desapego" de petistas ao Estado de Direito

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Na entrevista a seguir, o professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro) diz que o empate nas pesquisas ao final do primeiro turno entre Luiz Inácio Lula da Silva e seus adversários -que terminou por levar a eleição para o segundo turno- é culpa do "fogo amigo" do PT, partido que saiu desestruturado dos quatro anos de mandato de seu principal líder.
Mesmo em caso de reeleição, afirma Lessa, o PT não terá nomes para apresentar à sucessão de Lula em 2010. "O PT, durante o mandato de Lula, se desfez como partido, se enfraqueceu como organização partidária, teve dizimada sua linha de frente. O melhor que pode fazer é participar, como parte não-majoritária, de uma coligação em 2010." Em caso de derrota na atual disputa presidencial, "trauma inédito", o PT teria que ser "reinventado".  

FOLHA - Como se explica o empate entre Lula e todos os outros candidatos no final do primeiro turno?
RENATO LESSA
- Foram muitas bombas que explodiram no quintal do PT -todas elas produzidas pelo fogo amigo. A ausência no debate teve peso. Há sinais de que setores da classe média ficaram insatisfeitos com o fato de o presidente não se apresentar ao debate. Uma coisa que isoladamente talvez não tivesse peso. Mas você soma tudo -é uma soma infinitesimal- e isso tira o prato de comida da mesa. Uma eleição que estava ganha no primeiro turno!

FOLHA - Nesses detalhes todos o PT tem alguma razão se quiser reclamar do comportamento da mídia?
LESSA
- Não tem nenhuma razão. Se houve algum desvio de alguém na apresentação do dinheiro, por exemplo, houve desvio maior na sua existência.
Reclamar da divulgação é de um cinismo inaceitável.
Não vejo como justificar um possível insucesso a qualquer coisa que não seja endógena ao PT. Acho que o PT perdeu a eleição, se tiver perdido, se isso vier a acontecer, por ações da turma da casa.

FOLHA - As coisas se dificultam muito para Lula num segundo turno? Haveria chances para o PSDB?
LESSA
- Começa um jogo diferente. O time adversário entra no segundo tempo com todo o gás, para usar uma analogia de que o presidente gosta muito. O [candidato do partido Geraldo] Alckmin entrou nessa disputa para cumprir tabela. Não havia expectativa de vitória quando a coisa começou, e agora passa a ser possível.

FOLHA - Quais as razões da dianteira que Lula manteve durante todo o processo eleitoral?
LESSA
- Há, na verdade, uma cesta de fatores. Uma delas diz respeito ao fato de que a vantagem de concorrer, estando já no cargo, é inestimável. A mesma sensação atravessou a campanha de Fernando Henrique em 1998.
A desigualdade na exposição e, sobretudo, o hábito são poderosos diferenciais. No caso de Lula, essa impressão acabou por vencer um teste crucial.
Mesmo diante da subordinação da política brasileira ao campo do Direito Penal, ocorrida no último ano, o lugar da Presidência não foi erodido.
Já é lugar comum falar dos efeitos eleitorais do Bolsa-Família. Mas tenho para mim que um dos fatores da relativa imunização de Lula diante da sucessão de crises e da desconstrução endógena de seu partido tem a ver com sua capacidade de se apresentar como se estivesse fora da política.
O filme de João Moreira Salles mostrou, um tanto premonitoriamente, o modo de Lula de praticar cognição política: a biografia é uma fonte inesgotável de experiências e exemplos e fonte de elucidação do processo histórico. A mística do "nunca antes neste país" já estava ali plenamente instalada.
Para grande parte dos eleitores, Lula aparece como um ser providencial, acima da política. E é da política que sobrevêm as ameaças contra ele.
A impressão que tenho é que Lula condensa e retém em si um movimento de emergência popular de proporções inéditas. Mas tal movimento acabou por atravessar a política sem reformá-la minimamente. É como se o avanço político fosse limitado à ocupação de um espaço, pelos meios que forem necessários.

FOLHA - Há relação entre essa despolitização e o surgimento de casos como o do mensalão?
LESSA
- Essa indiferença diante do tema da qualidade da política -compartilhada, aliás, pelos analistas acadêmicos áulicos do petista-, quando a serviço de uma mística providencial, autoriza o desapego à legalidade e ao Estado de Direito. "Com tanto sucesso", pensam, "para quê mesuras à legalidade burguesa"? É curioso: os revolucionários portugueses de 1974 fizeram a sua revolução sem desrespeitar os sinais de trânsito. Por aqui, acabaram por transformar a revolução em matéria de usufruto pessoal e seguem a avançar os faróis. Legalidade, para quê?

FOLHA - Isso que você descreve para o presidente não é dissonante com a trajetória do PT?
LESSA
- Não sei. O PT sempre foi muito confuso quanto a isso também. O partido sempre foi a reunião de grupos bastante distintos, e cada um percebia no Lula o que queria ver. Algo assemelhado ao que [Sigmund] Freud denominava "onipotência do pensamento" -a dificuldade de dissociar processos mentais internos com o que de fato se passa no mundo.
O sindicalista puro e apolítico aparecia como uma sublime oportunidade de tábula rasa política para que nele os verdadeiros revolucionários inscrevessem o roteiro da salvação (laica e religiosa, àquela altura). Mas é preciso dizer que essa despolitização não é exclusiva do Lula. O que foi a candidatura Alckmin? O que é o "choque de gestão"? O supergerente? Também uma proposta despolitizada e despolitizadora.
Essa gente pensa que politiza quando ameaça chamar a polícia. Os programas que apresentam em nada prefiguram o que farão de fato quando e se eleitos.

FOLHA - Quais os pontos positivos do governo Lula?
LESSA
- Os programas assistencialistas são administrados com maior cobertura e competência. Nesse ponto avançamos com relação aos padrões tucanos habituais de demofobia. A capacidade de manutenção da estabilidade não é desprezível.
Por outro lado, o governo foi incapaz de fazer o país crescer num contexto internacional extremamente favorável.

FOLHA - Qual o principal aspecto negativo?
LESSA
- O mais grave foi a desconsideração do tema da legalidade -reiterando fartíssima tradição brasileira, remota e recente. Não é só um problema de moralidade e honestidade, temas ditos como "pequeno-burgueses". Se você desrespeita a legalidade num caso, quem garante que mais adiante não desrespeitará mais gravemente?

FOLHA - Como o sr. vê o futuro partidário no Brasil?
LESSA
- O futuro muito dependerá da sobrevida ou da superação do padrão altamente destrutivo das relações entre governo e oposição. Temo que um processo tão atravessado pela atmosfera do Direito Penal acabe por buscar soluções nos tribunais, e não na política.
Há um aspecto básico das consolidações democráticas que é o reconhecimento recíproco da oposição e do governo a respeito de sua legitimidade e do seu papel. A relação heterodoxa mantida pelas elites políticas brasileiras com o tema da legalidade põe sempre tudo sob suspeita. O veneno é a atmosfera. Um país pode se tornar politicamente inviável pelo padrão de conflito político praticado por suas elites.
O bom desenho de futuro dependerá da "despaulistização" da política nacional. De 1994 a 2010, por longos 16 anos, o país estará vulnerável ao ódio visceral das duas facções da "pátria paulistana". O desenho seria a convergência entre o segmento não-histérico do PSDB, a fração do PT não contaminada pela delinqüência e por segmentos do PMDB, por realismo e pela presença em seu interior de atores responsáveis. Esse poderia ser o núcleo de uma coalizão reformista e modernizadora.
Trata-se de um desenho de futuro, sem qualquer fundamento científico. A política tem mais parte com o absurdo do que com a ciência. Parte dos que acreditam que ela é uma ciência pensam que tudo está a correr bem. Não é um absurdo?

FOLHA - E o PT? Se Lula vence, teria como fazer seu sucessor?
LESSA
- Não creio. Não vejo para já candidato. O PT, durante o mandato de Lula, se desfez como partido, se enfraqueceu como organização partidária, teve dizimada sua linha de frente.
Sua principal tarefa no governo da República seria chegar a 2010. O melhor que pode fazer é participar, como parte não-majoritária, de uma coligação em 2010. Se não fizer isso, pode perder mais ainda, e correr o risco de deixar de ocupar a centralidade que ainda possui na vida partidária no país.

FOLHA - Se Lula perde, como ficam as coisas para o PT?
LESSA
- O PT terá que ser reinventado. É um trauma inédito. Perder a eleição implicará uma refundação rigorosa do PT.


Texto Anterior: Outro lado: Ustra diz que seu relato estava certo
Próximo Texto: Raio-X
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.