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ENTREVISTA DA 2ª/
RENATO LESSA
PT e PSDB despolitizam campanha eleitoral
Para cientista político, ao se apresentar como "acima da política", Lula "autoriza o desapego" de petistas ao Estado de Direito
RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL
Na entrevista a seguir, o professor do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio
de Janeiro) diz que o empate
nas pesquisas ao final do primeiro turno entre Luiz Inácio
Lula da Silva e seus adversários
-que terminou por levar a eleição para o segundo turno- é
culpa do "fogo amigo" do PT,
partido que saiu desestruturado dos quatro anos de mandato
de seu principal líder.
Mesmo em caso de reeleição,
afirma Lessa, o PT não terá nomes para apresentar à sucessão
de Lula em 2010. "O PT, durante o mandato de Lula, se desfez
como partido, se enfraqueceu
como organização partidária,
teve dizimada sua linha de
frente. O melhor que pode fazer
é participar, como parte não-majoritária, de uma coligação
em 2010." Em caso de derrota
na atual disputa presidencial,
"trauma inédito", o PT teria
que ser "reinventado".
FOLHA - Como se explica o empate
entre Lula e todos os outros candidatos no final do primeiro turno?
RENATO LESSA - Foram muitas
bombas que explodiram no
quintal do PT -todas elas produzidas pelo fogo amigo. A ausência no debate teve peso. Há
sinais de que setores da classe
média ficaram insatisfeitos
com o fato de o presidente não
se apresentar ao debate. Uma
coisa que isoladamente talvez
não tivesse peso. Mas você soma tudo -é uma soma infinitesimal- e isso tira o prato de comida da mesa. Uma eleição que
estava ganha no primeiro turno!
FOLHA - Nesses detalhes todos o PT
tem alguma razão se quiser reclamar do comportamento da mídia?
LESSA - Não tem nenhuma razão. Se houve algum desvio de
alguém na apresentação do dinheiro, por exemplo, houve
desvio maior na sua existência.
Reclamar da divulgação é de
um cinismo inaceitável.
Não vejo como justificar um
possível insucesso a qualquer
coisa que não seja endógena ao
PT. Acho que o PT perdeu a
eleição, se tiver perdido, se isso
vier a acontecer, por ações da
turma da casa.
FOLHA - As coisas se dificultam
muito para Lula num segundo turno? Haveria chances para o PSDB?
LESSA - Começa um jogo diferente. O time adversário entra
no segundo tempo com todo o
gás, para usar uma analogia de
que o presidente gosta muito. O
[candidato do partido Geraldo]
Alckmin entrou nessa disputa
para cumprir tabela. Não havia
expectativa de vitória quando a
coisa começou, e agora passa a
ser possível.
FOLHA - Quais as razões da dianteira que Lula manteve durante todo o
processo eleitoral?
LESSA - Há, na verdade, uma
cesta de fatores. Uma delas diz
respeito ao fato de que a vantagem de concorrer, estando já
no cargo, é inestimável. A mesma sensação atravessou a campanha de Fernando Henrique em 1998.
A desigualdade na exposição e, sobretudo, o hábito
são poderosos diferenciais. No
caso de Lula, essa impressão
acabou por vencer um teste
crucial.
Mesmo diante da subordinação da política brasileira ao campo do Direito Penal,
ocorrida no último ano, o lugar
da Presidência não foi erodido.
Já é lugar comum falar dos
efeitos eleitorais do Bolsa-Família. Mas tenho para mim que
um dos fatores da relativa imunização de Lula diante da sucessão de crises e da desconstrução endógena de seu partido
tem a ver com sua capacidade
de se apresentar como se estivesse fora da política.
O filme de João Moreira Salles mostrou, um tanto premonitoriamente, o modo de Lula de praticar cognição política: a
biografia é uma fonte inesgotável de experiências e exemplos
e fonte de elucidação do processo histórico. A mística do
"nunca antes neste país" já estava ali plenamente instalada.
Para grande parte dos eleitores, Lula aparece como um ser
providencial, acima da política.
E é da política que sobrevêm as
ameaças contra ele.
A impressão que tenho é que
Lula condensa e retém em si
um movimento de emergência
popular de proporções inéditas. Mas tal movimento acabou
por atravessar a política sem
reformá-la minimamente. É
como se o avanço político fosse
limitado à ocupação de um espaço, pelos meios que forem
necessários.
FOLHA - Há relação entre essa despolitização e o surgimento de casos
como o do mensalão?
LESSA - Essa indiferença diante
do tema da qualidade da política -compartilhada, aliás, pelos
analistas acadêmicos áulicos do
petista-, quando a serviço de
uma mística providencial, autoriza o desapego à legalidade e
ao Estado de Direito. "Com
tanto sucesso", pensam, "para
quê mesuras à legalidade burguesa"? É curioso: os revolucionários portugueses de 1974 fizeram a sua revolução sem desrespeitar os sinais de trânsito.
Por aqui, acabaram por transformar a revolução em matéria
de usufruto pessoal e seguem a
avançar os faróis. Legalidade,
para quê?
FOLHA - Isso que você descreve para o presidente não é dissonante
com a trajetória do PT?
LESSA - Não sei. O PT sempre
foi muito confuso quanto a isso
também. O partido sempre foi a
reunião de grupos bastante distintos, e cada um percebia no
Lula o que queria ver. Algo assemelhado ao que [Sigmund]
Freud denominava "onipotência do pensamento" -a dificuldade de dissociar processos mentais internos com o que de
fato se passa no mundo.
O sindicalista puro e apolítico aparecia como uma sublime oportunidade de tábula rasa política
para que nele os verdadeiros
revolucionários inscrevessem
o roteiro da salvação (laica e religiosa, àquela altura).
Mas é preciso dizer que essa
despolitização não é exclusiva
do Lula. O que foi a candidatura
Alckmin? O que é o "choque de
gestão"? O supergerente? Também uma proposta despolitizada e despolitizadora.
Essa gente pensa que politiza quando
ameaça chamar a polícia. Os
programas que apresentam em
nada prefiguram o que farão de
fato quando e se eleitos.
FOLHA - Quais os pontos positivos
do governo Lula?
LESSA - Os programas assistencialistas são administrados
com maior cobertura e competência. Nesse ponto avançamos
com relação aos padrões tucanos habituais de demofobia. A
capacidade de manutenção da
estabilidade não é desprezível.
Por outro lado, o governo foi incapaz de fazer o país crescer
num contexto internacional
extremamente favorável.
FOLHA - Qual o principal aspecto
negativo?
LESSA - O mais grave foi a desconsideração do tema da legalidade -reiterando fartíssima
tradição brasileira, remota e recente. Não é só um problema de
moralidade e honestidade, temas ditos como "pequeno-burgueses". Se você desrespeita a
legalidade num caso, quem garante que mais adiante não desrespeitará mais gravemente?
FOLHA - Como o sr. vê o futuro partidário no Brasil?
LESSA - O futuro muito dependerá da sobrevida ou da superação do padrão altamente destrutivo das relações entre governo e oposição. Temo que um
processo tão atravessado pela
atmosfera do Direito Penal acabe por buscar soluções nos tribunais, e não na política.
Há um aspecto básico das
consolidações democráticas
que é o reconhecimento recíproco da oposição e do governo
a respeito de sua legitimidade e
do seu papel. A relação heterodoxa mantida pelas elites políticas brasileiras com o tema da
legalidade põe sempre tudo sob
suspeita. O veneno é a atmosfera. Um país pode se tornar politicamente inviável pelo padrão
de conflito político praticado
por suas elites.
O bom desenho de futuro dependerá da "despaulistização"
da política nacional. De 1994 a
2010, por longos 16 anos, o país
estará vulnerável ao ódio visceral das duas facções da "pátria
paulistana".
O desenho seria a convergência entre o segmento não-histérico do PSDB, a fração do PT
não contaminada pela delinqüência e por segmentos do
PMDB, por realismo e pela presença em seu interior de atores
responsáveis. Esse poderia ser
o núcleo de uma coalizão reformista e modernizadora.
Trata-se de um desenho de
futuro, sem qualquer fundamento científico. A política tem
mais parte com o absurdo do
que com a ciência. Parte dos
que acreditam que ela é uma
ciência pensam que tudo está a
correr bem. Não é um absurdo?
FOLHA - E o PT? Se Lula vence, teria
como fazer seu sucessor?
LESSA - Não creio. Não vejo para já candidato. O PT, durante o
mandato de Lula, se desfez como partido, se enfraqueceu como organização partidária, teve
dizimada sua linha de frente.
Sua principal tarefa no governo
da República seria chegar a
2010. O melhor que pode fazer
é participar, como parte não-majoritária, de uma coligação
em 2010. Se não fizer isso, pode
perder mais ainda, e correr o
risco de deixar de ocupar a centralidade que ainda possui na
vida partidária no país.
FOLHA - Se Lula perde, como ficam
as coisas para o PT?
LESSA - O PT terá que ser reinventado. É um trauma inédito.
Perder a eleição implicará uma
refundação rigorosa do PT.
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