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NO PLANALTO
Forrada com pedras de brilhante a rua da sonegação
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
Localizado o céu do sonegador: fica no centro do espaço infinito que separa a formalização das dívidas tributárias do
ato de cobrar. Ali, a sonegação encontra a paz eterna, sob os auspícios do Estado, senhor oni(m)potente.
No apagar das luzes de 2004, o
Congresso aprovou uma lei que
repavimentou o calçamento que
leva ao Éden do calote. Encontra-se agora ladrilhado com pedrinhas de brilhante, para o sonegador passar.
A nova lei (11.051) nasceu de medida provisória (219) de Lula. Foi
aprovada, sem alarde, em 29 de
dezembro de 2004, entre o peru do
Natal e a champanhe do Ano Novo. Injetou-se no texto um artigo
(6º) redentor. Autoriza a Justiça a
decretar a prescrição de milhares
de débitos fiscais e previdenciários.
O artigo acomodou na fila do
paraíso débitos que podem roçar a
casa dos R$ 100 bilhões. São dívidas que, por incontroversas, estão
inscritas na dívida ativa da
União. Graças à incompetência do
governo em cobrá-las, vagueiam
sem rumo pelos escaninhos do Judiciário.
Juntos, os créditos do fisco e da
Previdência que se encontram em
fase de cobrança judicial somam
cerca de R$ 350 bilhões. Estima-se
que 30% desses débitos já ultrapassaram os prazos legais de prescrição -cinco anos para as pendências fiscais e dez anos para as
previdenciárias.
Abaixo, um roteiro para entender a gênese da encrenca:
1) sempre que um débito fiscal é
constituído, abre-se a fase de contestação. Vencidas as etapas de recurso, o governo emite um documento ("certidão de dívida ativa") que marca o fim da discussão
em âmbito administrativo;
2) passa-se à fase de cobrança
judicial. Formalizado o processo, o
juiz intima o devedor a pagar em
cinco dias ou oferecer bens como
garantia. Um oficial de Justiça é
incumbido de notificar o sonegador;
3) contam-se aos milhares os casos em que o devedor não é encontrado. Há também incontáveis casos em que, localizado o sonegador, o oficial de Justiça não consegue identificar bens passíveis de
penhora;
4) no estágio seguinte, o juiz notifica o insucesso à Procuradoria
da Fazenda Nacional e ao INSS.
Cabe ao governo encontrar devedores e bens penhoráveis;
5) na maioria dos casos, a advocacia pública não consegue desencavar o paradeiro dos devedores e
dos bens. Quando isso ocorre, o governo recorre à lei 6.830, de 1980;
6) a lei prevê, em seu artigo 40, a
suspensão da cobrança por um
ano, até que seja "localizado o devedor ou encontrados os bens";
7) decorridos os 12 meses, o juiz
cobra uma posição dos advogados
públicos. Não raro, o governo informa novamente à Justiça que
não logrou encontrar nem os devedores nem os bens;
8) o juiz vê-se, então, obrigado a
remeter os processos ao arquivo.
Ali, as cobranças ficam à espera de
que o governo cumpra com a sua
obrigação. Há processos que dormitam no armário há mais de 20
anos;
9) foi nesse cenário que nasceu o
artigo 6º da lei 11.051. Ele adiciona
um novo parágrafo (4º) no artigo
40 da velha lei 6.830, aquele que
permite a suspensão temporária
das cobranças. O parágrafo injetado na lei diz o seguinte: "Se da decisão que ordenar o arquivamento
[da cobrança] tiver decorrido o
prazo prescricional [cinco anos
para débitos fiscais e dez anos para as dívidas previdenciárias], o
juiz, depois de ouvida a Fazenda
Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e
decretá-la de imediato";
10) ao eximir-se de vetar a nova
regra, Lula como que reconheceu
a incompetência do Estado. Confessou, por assim dizer, a incapacidade do governo de cobrar um naco do bolo de dívidas fiscais e previdenciárias. E delegou aos juízes
o poder de decretar a prescrição
das cobranças;
11) investidos no papel de coveiros de processos insolúveis, juízes
das varas de execução fiscal de todo o país entregaram-se à tarefa
de revolver arquivos mortos. Só
numa vara de Brasília, localizaram-se 26 mil causas caducas;
12) escudados na nova lei, os juízes cobram da Fazenda e do INSS
um posicionamento em relação
aos processos passíveis de prescrição. O passo seguinte será o sepultamento das causas;
13) o governo argumenta que o
enterro coletivo será saudável.
Alega que a maioria das execuções
insepultas envolve dívidas de pequeno valor. Livres dos casos irrisórios, a União poderá concentrar-se na caça aos grandes devedores;
14) trata-se de uma meia-verdade. Aqui se revelou, em fevereiro
de 2004, o caso da AGF Brasil Seguros, uma das maiores seguradoras do país. Devia ao fisco
R$ 46,4 milhões. Valendo-se de sucessivos recursos judiciais, protelou o pagamento por uma década.
Em 2002, invocou a prescrição do
débito;
15) indeferido pelo escritório
paulista da Procuradoria da Fazenda, o pedido subiu para Brasília. Em 16 de julho de 2003, já sob
Lula, o Ministério da Fazenda declarou prescrita a dívida da AGF;
16) a verdade inapelável é que,
sob o pretexto de produzir superávits fiscais, o governo impõe à advocacia pública sucessivos cortes
orçamentários. Atira contra o próprio pé, mutilando a máquina coletora de tributos. Na Fazenda
Nacional, cada procurador
"acompanha" simultaneamente
5.530 processos;
17) Na Previdência, auditoria
realizada pelo TCU em agosto de
2004, constatou que os procuradores não se davam nem ao trabalho de atualizar nos computadores o andamento dos processos
de cobrança;
18) encostada contra a parede, a
Previdência ordenou aos procuradores (memorando nº 2, de 10
de janeiro de 2005) "a depuração
e atualização das informações do
sistema informatizado, a fim de
que retratem fielmente a situação
dos créditos e devedores do INSS";
19) o trabalho de "depuração",
ainda inconcluso, já detectou
inúmeros processos que, paralisados há mais de uma década, estão
prestes a ingressar no céu da sonegação. Sob a direção do honrado
ministro Romero Jucá, recém-nomeado, os problemas da Previdência decerto serão sanados;
20) não é à toa que Brasília tenta desesperadamente impor aos
contribuintes em dia com as suas
obrigações novos aumentos da sobrecarga tributária.
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