São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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NO PLANALTO

Forrada com pedras de brilhante a rua da sonegação

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Localizado o céu do sonegador: fica no centro do espaço infinito que separa a formalização das dívidas tributárias do ato de cobrar. Ali, a sonegação encontra a paz eterna, sob os auspícios do Estado, senhor oni(m)potente.
No apagar das luzes de 2004, o Congresso aprovou uma lei que repavimentou o calçamento que leva ao Éden do calote. Encontra-se agora ladrilhado com pedrinhas de brilhante, para o sonegador passar.
A nova lei (11.051) nasceu de medida provisória (219) de Lula. Foi aprovada, sem alarde, em 29 de dezembro de 2004, entre o peru do Natal e a champanhe do Ano Novo. Injetou-se no texto um artigo (6º) redentor. Autoriza a Justiça a decretar a prescrição de milhares de débitos fiscais e previdenciários.
O artigo acomodou na fila do paraíso débitos que podem roçar a casa dos R$ 100 bilhões. São dívidas que, por incontroversas, estão inscritas na dívida ativa da União. Graças à incompetência do governo em cobrá-las, vagueiam sem rumo pelos escaninhos do Judiciário.
Juntos, os créditos do fisco e da Previdência que se encontram em fase de cobrança judicial somam cerca de R$ 350 bilhões. Estima-se que 30% desses débitos já ultrapassaram os prazos legais de prescrição -cinco anos para as pendências fiscais e dez anos para as previdenciárias.
Abaixo, um roteiro para entender a gênese da encrenca:
1) sempre que um débito fiscal é constituído, abre-se a fase de contestação. Vencidas as etapas de recurso, o governo emite um documento ("certidão de dívida ativa") que marca o fim da discussão em âmbito administrativo;
2) passa-se à fase de cobrança judicial. Formalizado o processo, o juiz intima o devedor a pagar em cinco dias ou oferecer bens como garantia. Um oficial de Justiça é incumbido de notificar o sonegador;
3) contam-se aos milhares os casos em que o devedor não é encontrado. Há também incontáveis casos em que, localizado o sonegador, o oficial de Justiça não consegue identificar bens passíveis de penhora;
4) no estágio seguinte, o juiz notifica o insucesso à Procuradoria da Fazenda Nacional e ao INSS. Cabe ao governo encontrar devedores e bens penhoráveis;
5) na maioria dos casos, a advocacia pública não consegue desencavar o paradeiro dos devedores e dos bens. Quando isso ocorre, o governo recorre à lei 6.830, de 1980;
6) a lei prevê, em seu artigo 40, a suspensão da cobrança por um ano, até que seja "localizado o devedor ou encontrados os bens";
7) decorridos os 12 meses, o juiz cobra uma posição dos advogados públicos. Não raro, o governo informa novamente à Justiça que não logrou encontrar nem os devedores nem os bens;
8) o juiz vê-se, então, obrigado a remeter os processos ao arquivo. Ali, as cobranças ficam à espera de que o governo cumpra com a sua obrigação. Há processos que dormitam no armário há mais de 20 anos;
9) foi nesse cenário que nasceu o artigo 6º da lei 11.051. Ele adiciona um novo parágrafo (4º) no artigo 40 da velha lei 6.830, aquele que permite a suspensão temporária das cobranças. O parágrafo injetado na lei diz o seguinte: "Se da decisão que ordenar o arquivamento [da cobrança] tiver decorrido o prazo prescricional [cinco anos para débitos fiscais e dez anos para as dívidas previdenciárias], o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato";
10) ao eximir-se de vetar a nova regra, Lula como que reconheceu a incompetência do Estado. Confessou, por assim dizer, a incapacidade do governo de cobrar um naco do bolo de dívidas fiscais e previdenciárias. E delegou aos juízes o poder de decretar a prescrição das cobranças;
11) investidos no papel de coveiros de processos insolúveis, juízes das varas de execução fiscal de todo o país entregaram-se à tarefa de revolver arquivos mortos. Só numa vara de Brasília, localizaram-se 26 mil causas caducas;
12) escudados na nova lei, os juízes cobram da Fazenda e do INSS um posicionamento em relação aos processos passíveis de prescrição. O passo seguinte será o sepultamento das causas;
13) o governo argumenta que o enterro coletivo será saudável. Alega que a maioria das execuções insepultas envolve dívidas de pequeno valor. Livres dos casos irrisórios, a União poderá concentrar-se na caça aos grandes devedores;
14) trata-se de uma meia-verdade. Aqui se revelou, em fevereiro de 2004, o caso da AGF Brasil Seguros, uma das maiores seguradoras do país. Devia ao fisco R$ 46,4 milhões. Valendo-se de sucessivos recursos judiciais, protelou o pagamento por uma década. Em 2002, invocou a prescrição do débito;
15) indeferido pelo escritório paulista da Procuradoria da Fazenda, o pedido subiu para Brasília. Em 16 de julho de 2003, já sob Lula, o Ministério da Fazenda declarou prescrita a dívida da AGF;
16) a verdade inapelável é que, sob o pretexto de produzir superávits fiscais, o governo impõe à advocacia pública sucessivos cortes orçamentários. Atira contra o próprio pé, mutilando a máquina coletora de tributos. Na Fazenda Nacional, cada procurador "acompanha" simultaneamente 5.530 processos;
17) Na Previdência, auditoria realizada pelo TCU em agosto de 2004, constatou que os procuradores não se davam nem ao trabalho de atualizar nos computadores o andamento dos processos de cobrança;
18) encostada contra a parede, a Previdência ordenou aos procuradores (memorando nº 2, de 10 de janeiro de 2005) "a depuração e atualização das informações do sistema informatizado, a fim de que retratem fielmente a situação dos créditos e devedores do INSS";
19) o trabalho de "depuração", ainda inconcluso, já detectou inúmeros processos que, paralisados há mais de uma década, estão prestes a ingressar no céu da sonegação. Sob a direção do honrado ministro Romero Jucá, recém-nomeado, os problemas da Previdência decerto serão sanados;
20) não é à toa que Brasília tenta desesperadamente impor aos contribuintes em dia com as suas obrigações novos aumentos da sobrecarga tributária.


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