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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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REFORMA SOB PRESSÃO

Governador recusa papel de algoz para os Estados

Aécio vê descompasso entre Planalto e base no Congresso

Wellington Pedro
O governador de Minas Gerais, Aécio Neves (PSDB), durante entrevista no Palácio da Liberdade


RAYMUNDO COSTA
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Eleito o interlocutor dos 27 governadores de Estado com o Palácio do Planalto, o governador de Minas Gerais, Aécio Neves, 42, afirma: " O que eu defendo é que o governo federal e os governadores caminhem solidariamente no Congresso qualquer que seja a proposta [reforma da Previdência]". Mas ressalva: "O que não é correto é que uns se apresentem fazendo as concessões e outros com o papel dos algozes. Esse papel, nós [os governadores] não aceitamos e não exerceremos".
Segundo Aécio, essa talvez seja a razão pela qual, num entendimento com o ministro José Dirceu (Casa Civil), não tenha ocorrido a reunião que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva queria fazer com os governadores quinta passada. "Achamos melhor que não houvesse a reunião", diz.
Na entrevista à Folha, Aécio fez questão de destacar que o papel que exerce na comissão de governadores, representantes de uma das cinco regiões (o Sudeste) do país que negociam com o governo federal, se deve ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin.
Leia trechos da entrevista.

 
Folha - O pacto firmado entre os governadores e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acabou?
Aécio Neves -
O presidente e os governadores bebem na mesma fonte, que é a legitimidade do voto popular. E é a partir dessa legitimidade que nós, superando questões partidárias, fizemos algo inédito na história contemporânea do Brasil: sentamos em torno de uma mesa e construímos duas propostas, uma em torno da questão previdenciária e outra em torno da tributária, que não eram a ideal para nenhuma das partes, mas que eram a possível.

Folha - O que deu errado?
Aécio -
Desde o início ficou claro que não se faz reforma sem contrariar interesses. Era fundamental que todos dividissem os ônus e os bônus. Os governadores, apesar das diferenças regionais, solidarizam-se com o governo.

Folha - Certo, mas houve mudanças a partir daí...
Aécio -
Na verdade, criou-se uma instância nova na política brasileira, que confesso que não conhecia. No meu tempo de parlamento a base de governo expressava as posições de governo, obviamente depois de discussões internas. O que estamos assistindo ao longo dessas últimas semanas é que o governo assumiu determinados compromissos e a base de governo assumiu outros no Congresso e pressionou o próprio governo a alterar suas posições.

Folha - O governo cedeu?
Aécio -
Sem entrar no mérito das concessões, o processo, a meu ver, é que foi equivocado. Uma relação dessas pressupõe uma grande confiança mútua, e não é possível que recuos continuem acontecendo, como aconteceram permanentemente. Coube aos governadores o papel dos algozes de determinados segmentos da vida nacional, o que nós não queremos ser. É um equívoco quererem apequenar a posição dos governadores nesse processo.

Folha - Qual o risco dessa nova instância?
Aécio -
Qualquer decisão tomada no Congresso deve ser absolutamente respeitada por todos nós, seja em relação a teto, à integralidade ou a qualquer outra matéria. O Congresso é autônomo e é quem dará a palavra final. Apenas a referência que eu faço é que se construiu uma relação de pressão nova da base de governo em relação ao próprio governo. Acredito que o mais adequado seja o governo conversar com a sua base e ver qual o limite, até aonde a base está disposta a ir, e apenas assumir compromissos que possam ser sustentados. Acho que houve aí uma inversão do processo.

Folha -Quando o sr. se refere à base fala do PT ou de todos os partidos aliados do governo?
Aécio -
Tenho grande respeito pessoal pelo presidente Lula. Mais do que isso, tenho amizade por ele. Vejo no presidente um momento bonito, importante para a vida do país. Confio na sinceridade de suas intenções. O que percebo hoje, com alguma clareza, o que talvez esteja trazendo dificuldades para o presidente, é que setores que apóiam o governo não têm convicção em relação ao conteúdo das reformas.

Folha - Por quê?
Aécio -
Isso fica latente no momento em que as pressões, as corporações, os lobbies se apresentam. É algo até de origem. Nós temos que tentar compreender. Mas isso tem que ter um limite.

Folha - Qual o limite?
Aécio -
O limite é a manutenção de propostas cujo contorno final signifique avanços. Se formos a cada dia perdendo conteúdo e flexibilizando, vai chegar um momento em que faremos as contas e avaliaremos que as reformas não valerão a pena. Não acho que isso aconteceu. Acho que as reformas não estão feridas de morte. Ainda. Mas é preciso que a cada votação não haja concessões. Falta convencimento profundo de setores que apóiam o governo, do PT e de alguns partidos em torno do PT.

Folha -O governo precisa recompor sua base política no Congresso?
Aécio -
Falta uma sintonia mais fina. O presidente tem muitos méritos conosco, e eu expresso o sentimento de muitos governadores, ele tem sido absolutamente correto até agora. Ele tem tido dificuldades muito maiores em sua base política do que com os seus adversários. Nós, da oposição, estamos solidários para que ele seja o grande construtor das reformas, apesar de a grande maioria dos governadores estar acossada em seus Estados por aquilo que eu chamaria de aparelhamento da máquina pública, a partidarização da máquina pública, pelo PT em especial. Isso, em outros tempos, seria motivo para que os governadores não se dispusessem a estar sentados à mesa construindo essas reformas. Houve uma ocupação, enfim natural, talvez até com algum exagero, em cargos de carreira pela máquina partidária do PT.

Folha - Passados sete meses, aparentemente o governo do PT caiu na mesma armadilha do PSDB. Se cresce um pouco, tem inflação, o dólar e os juros disparam. Como escapar dessa cilada?
Aécio -
Eu tenho respeito pela condução econômica do ministro Antonio Palocci (Fazenda). Ele foi firme, corajoso, fica aqui esse registro. Mas exagerou um pouco na mão. Nós produzimos, nesse primeiro semestre, um superávit de 5,4% do PIB. Inédito, maior da história do Brasil, até hoje, R$ 5,5 bilhões acima da meta acertada com o FMI (Fundo Monetário Internacional). Apenas isso já teria dado ao Brasil, se isso fosse compartilhado com os Estados, instrumentos de geração de emprego e de estímulo ao crescimento. Houve excesso. Acredito que o próprio FMI esteja preparado para um novo entendimento. Agora é preciso fazer o salto da primeira etapa, a da falta de credibilidade.

Folha - Mas como faz esse salto?
Aécio -
O primeiro momento eu não quero questionar, o governo tinha de ser rígido, tinha de mostrar como se faz essa gestão macroeconômica e de respeito à Lei de Responsabilidade Fiscal. Mas agora é a hora do salto. E tenho certeza que o presidente fará esse salto. Não tenho dúvidas de que o governo deve estar conversando com o FMI, mesmo que informalmente, em relação à necessidade de restabelecer o crescimento.

Folha - Qual a saída?
Aécio -
Longe de mim ter a pretensão de dar qualquer conselho, mas o que posso dizer, como uma sugestão aqui das montanhas de Minas Gerais, é o seguinte: vamos ousar um pouco mais, ousar com responsabilidade.

Folha - Na área tributária, os governadores não estão preocupados apenas com as realidades locais?
Aécio -
Essa geração de governadores tem feito um enorme esforço de contas. No caso de Minas, o esforço é inédito: 85% de todos os repasses do governo federal retornam para o pagamento da dívida. Hoje estamos obrigados a fazer um superávit de R$ 670 milhões, e daqui a dois anos esse superávit terá de ser de R$ 1,5 bilhão. Essa é a situação dos Estados.

Folha - Há indícios de que a reforma tributária vai se restringir à CPMF e à DRU.
Aécio -
A reforma tributária está hoje restrita a uma nova legislação de ICMS, que é positiva, por mais que não signifique de imediato qualquer garantia de receita para os Estados. Eu acredito e confio muito na sensibilidade do presidente. Hoje, 64% dos tributos estão nas mãos do governo federal. Jamais houve na história do país concentração tão grande. 23% nas mãos dos Estados e cerca de 13% nas dos municípios.

Folha - Como isso afeta a governabilidade?
Aécio -
Estamos assistindo talvez a mais séria crise já vivida no país em relação à governabilidade dos Estados e dos municípios. Não é possível pensar num projeto tributário concentrador...

Folha - Na prática, governador, como essa crise se manifesta?
Aécio -
O exemplo real de Minas Gerais hoje: mais de 100% do que o Estado efetivamente arrecada está comprometido com o pagamento da dívida da União, com o pagamento de pessoal e com transferências constitucionais, que são educação e saúde, sobrando zero para investimento e custeio. Não há como se traçar um projeto de desenvolvimento para o país sem que os Estados e os municípios façam parte desse projeto. O governo precisa ter a ousadia de dividir essa responsabilidade também com os Estados. Se os Estados tiverem sua capacidade de investimento comprometida, o país não vai crescer.

Folha - Como o sr. vê o chamado caos social: é alarmismo da direita interessada em desgastar o governo ou uma ameaça real?
Aécio -
Não vejo ainda nesse nível, até porque não sou catastrofista. Temos alguns sinais de alerta em relação à questão do campo. Se avaliarmos outros países, os governos de esquerda costumam ser muito mais testados pelos movimentos sociais. Eu vejo alguns movimentos testando o governo do PT, que deverá, de forma serena, mas absolutamente firme, estabelecer os limites.

Folha - Mas o MST está onde sempre esteve. Aliás, no governo passado foi além e invadiu a fazenda dos familiares do presidente.
Aécio -
O governo do Lula quer se consolidar como centro-esquerda. É o que se percebe. Ele sofre o teste da esquerda para saber aonde ele vai e, obviamente, o da oposição mais radical da direita.

Folha - O governo está transigindo com aventuras radicais?
Aécio -
Talvez esteja faltando uma clareza maior do que o governo pretende e tem condições de fazer na questão do campo. Eu diria que não é uma questão de alarmismo, mas uma luz amarela que se acende. Estaremos atentos.



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