São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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JANIO DE FREITAS

O fator poderoso


Como regra, a lei continua abaixo dos militares, como se todos se confundissem com as Forças Armadas

A DIVISÃO É velha e não se extinguirá porque a força não o permitiria. Ainda assim, o improvável êxito da reabertura de discussão sobre o alcance da anistia, para isentar ou não de punições os militares criminosos de tortura e assassinatos, não diminui o mérito de afinal um governo abordar o assunto, nos 23 anos de regime civil. Tanto mais que dois ministros, Paulo Vanucchi (Direitos Humanos) e Tarso Genro (Justiça), expuseram argumentos sobre a limitação da lei de anistia aos crimes políticos, sem beneficiar crimes comuns e imprescritíveis por tratados internacionais, sendo a tortura declarada crime contra a humanidade.
Ao que um dos dois ministros da Defesa, Nelson Jobim, deu com presteza sua esperável e assargentada resposta: "A lei da anistia não muda", e pronto. Em tempo: o outro ministro da Defesa, Mangabeira Unger, também anteontem divulgou como ele "quer" o Exército na pretensa defesa da Amazônia, mas, de fato, os ministros da Defesa continuam sendo três: os chefes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, os que decidem com seu pessoal.
Entre os países criadores dos chamados "anos de chumbo", o Brasil é o único que ampara os responsáveis e os praticantes dos crimes comuns contra opositores da ditadura. A associação antidemocrática desses países estendeu-se à produção comum de leis de anistia, mas a Argentina já tem muitos condenados à prisão, com o reconhecimento da sua Corte Suprema de que os crimes contra a humanidade não expiram com o tempo; no Chile, a Corte Suprema validou a intenção da presidente Michelle Bachelet e autorizou processos, já com numerosas condenações e centenas de inquéritos; e, no Uruguai, o governo Tabaré Vasquez abriu caminho a processos que já chegam a resultados.
A anistia absoluta é defendida no Brasil com argumentos sintetizados em poucas linhas: "A anistia foi a mesma para os dois lados, com os opositores da ditadura (mesmo os "terroristas" assim batizados pelo "Jornal do Brasil') também isentados de punição, muitos deles hoje em cargos no governo".
Essa anistia brasileira para os dois lados tem, em sua extensão a torturadores, um aspecto interessante. De uma parte, anistia a ação criminosa e seu autor; e de outro, anistia o quê? O padecimento físico, o transtorno psicológico, as seqüelas pela vida afora, a morte sob choques, ou pancada, ou afogamento, ou tiro, ou enforcamento? Ações de natureza política dos dois lados seriam alcançáveis por anistia, mas anistiar quem praticou o ato (não-político) de tortura ou morte e quem o padeceu é a impossível equiparação do criminoso e sua vítima.
E "os opositores da ditadura não foram punidos"? Foram presos e torturados; foram mortos em tocaias nas ruas e foram assassinados em quartéis. Se isso não é punição, o que é? E não só eles foram assim punidos. Seus pais, suas mulheres ou maridos e seus filhos foram também punidos, muitos com o mesmo tratamento só por serem parentes de perseguidos, todos com o mesmo sofrimento emocional.
A anistia brasileira inclui tortura, assassinato e desaparecimento não porque seja "igual para os dois lados", "conciliação" ou "esquecimento". É só porque a mudança de regime não mudou algo essencial: como regra, a lei continua abaixo dos militares, como se todos se confundissem com as Forças Armadas. Está aí, obscurecido pela providencial ação escandalosa da polícia contra um banqueiro e amigos seus, a decisão para um crime com envolvimento de oficiais. Não foi feita investigação nenhuma, não há nem uma só prova, nem sequer indício, de que os três rapazes da Providência tenham sido mortos por bandidos do Morro da Mineira. Assim, porém, foi logo estabelecido por versão militar. Nada mais fácil, se necessário, do que policiais pegarem alguns por aí e deles extraírem confissões que deixem o pelotão militar, apenas, como providenciador de simples castigo. Um pequeno erro.
A possibilidade de processos e julgamentos, aberta na Argentina, no Chile e no Uruguai, depende em grande parte de um fator poderoso: a dignidade nacional. Sentimento do qual - mostram a amplitude da corrupção administrativa, a devassidão política, a criminalidade urbana e a repressão corrompida - por aqui só se vêem vestígios quando a seleção brasileira perde por falta de empenho. Ou, dizem, "de atitude".


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