São Paulo, domingo, 03 de setembro de 2006

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ELEIÇÕES 2006 / TENDÊNCIAS DO VOTO

Voto nulo é política radical, diz psicanalista

Tales Ab'Saber vê tentativa de setores desiludidos com o PT de pensar e atuar politicamente fora da esfera dos partidos

Intelectual afirma que Lula percebeu a falência do PT e passou a falar diretamente aos pobres, que perderam toda a confiança nas elites

FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL

Há algo novo para além da apatia do cenário político brasileiro. A "suspensão das paixões" nesse campo criou demanda por uma política fora dos partidos, da qual o voto nulo seria uma expressão, diz o psicanalista Tales Ab'Saber, 41. "Os cidadãos que votam nulo estão radicalizando a política num momento que ela tende a desaparecer", disse durante a entrevista realizada em seu consultório, na tarde chuvosa da última sexta-feira. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pensador de esquerda que já declarou o fim do PT, o psicanalista diz discordar de "tudo" que o presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Marco Aurélio de Mello, tem dito para estimular o voto. "Voto nulo não é o voto desinformado, incapaz de avaliar, desinteressado. Pelo contrário, é o voto hiperinformado." Leia a seguir trechos da conversa com Ab'Saber, que tratou também da blindagem do presidente Lula da Silva (PT) e do fracasso, até aqui, da oposição.  

FOLHA - A revista "The Economist" disse [na semana passada] que Lula se beneficia de uma onda de bem-estar e apatia. O sr. concorda?
TALES AB'SABER
- É uma apatia que tem duas frentes. A desmobilização no espaço dos cidadãos, que é uma espécie de crise de ideais, e uma apatia do lado dos políticos, que não querem atirar a primeira pedra porque todos os partidos têm envolvimento com a corrupção. Um elemento importante para estabelecer essa espécie de "suspensão das paixões" é a liquidação do PT ao longo do primeiro governo Lula. Se o PT tivesse aproveitado politicamente a crise e radicalizado o debate sobre o espaço da política e sua falência, nesse momento a política teria recuperado a sua dignidade. E cabia ao PT fazer isso, o PT que era o estrangeiro. Mas o PT sacrificou suas estrangeirice, seu pólo crítico, ao convencionalismo da política brasileira. Vivemos um momento de grande desorientação para os cidadãos que tinham conexões políticas. É uma crise com o PT, mas com o PSDB também. O PSDB também não se diferencia nesse processo de corrupção endêmica.

FOLHA - Há grupos que fazem campanhas por democracia direta, regulamentar referendo, plebiscito. Dizem que isso seria um caminho para dar um choque de política.
AB'SABER
- Há um movimento conceitual e simbólico que necessita pensar a política fora os partidos, o que é novo. Essa é uma região muito complexa, que tanto pode ser uma proposição republicana, reformista, como essa do professor [Fábio Konder] Comparato, quanto pode ser um começo de um trabalho crítico mais radical. Nesse nível mais radical, poderia ser tanto um voto nulo republicano, para atacar a estrutura viciada da política, quanto um voto nulo radicalmente crítico, quer dizer, um voto que diz "o espaço do Brasil é inviável". Essa experiência negativa se aproxima um pouco da experiência do que é [a facção criminosa] o PCC. A negativa da política pode ser a tradução de que não há negociação mais com o espaço público, do Estado. Aí a relação do cidadão com o que seria o espaço da política é de confronto. Isso é semelhante à facção, e essa uma consciência nova que pode estar começando a surgir e que pode ser importante para o Brasil, um pouco mais de impaciência com um processo que historicamente esboroa e se torna república particular.

FOLHA - Essa reação, do voto nulo, pode ser amadurecimento?
AB'SABER
- Tem aí um voto Pilatos, não sujo minhas mãos, que é um pouco imaturo. Mas a posição conflitante, que percebe o isolamento do espaço da política em relação à vida nacional pode ser madura, no sentido de romper com a ideologia conservadora. Ela pode estar formulando uma crítica mais radical ao Brasil. Não é por acaso que é nesse momento de falência do PT que emerge o PCC. O espaço da política que desaparece da vida social é ocupado com uma intensidade maior, que pode ser a própria crítica. Desse ponto de vista, o voto nulo não é nada ingênuo. Há três dimensões do voto nulo: um moral, banal, regressivo; um voto republicano negativo e um voto crítico radical.

FOLHA - Votam nulo pessoas com boa educação, bom nível social, que vivem nos grande centros, não é uma contradição?
AB'SABER
- Elas estão fazendo diagnóstico de que não há alternativa pelo interior da trama positiva e oficial da política. Elas têm condição de fazer esse diagnóstico e estão acreditando nele. Elas estão identificadas com o choque negativo. Vamos acertar o espaço da política por fora dele. Essa é a política que pode ser interessante agora, deslegitimar, isso é uma posição radical que começa a ganhar forma e prática. Voto nulo não é o voto desinformado, incapaz de avaliar, desinteressado, pelo contrário, é o voto hiperinformado.

FOLHA - O ministro Marco Aurélio comparou o voto nulo a uma avestruz que na tempestade de areia enfia a cabeça em um buraco.
AB'SABER
- Eu não concordo com nada do que diz o ministro. Inclusive quando ele diz que votar é ser patrão. É uma distorção radical do sentido do que é espaço público, política, igualdade de direitos. Essa não é uma relação de submissão e de poder direta, como é a de patrão e empregado. Nesses pequenos sintomas a gente vê a crise do oficialismo da política. Eles querem convocar o cidadão, e convocam por aquilo que é antipúblico. O sentido é de submissão, da república particular, a ideologia é a do mercado. É muito grave isso tudo.

FOLHA - Por que, nesse quadro, Lula foi poupado?
AB'SABER
- Lula foi muito esperto ao perceber o afundamento do navio do PT. O partido correspondia ao interesse mais radical das classes médias esclarecidas. Ele rompeu com essas forças, já no início do governo, depois ele deixou o PT afundar. Com base no quê? Na identificação afetiva. Percebeu que o enraizamento dele na classe média crítica tinha ruído e passou a falar diretamente, por meio da fantasia da proximidade, algo da velha cordialidade brasileira, com as classe pobres, principalmente do Nordeste. Isso só funciona porque essas classes trabalhadoras perderam totalmente a confiança na política das elites, não há alternativa do outro lado, dos coronéis, dos bacanas de São Paulo, que têm livros escritos em cinco línguas. Essa é uma crise da direita. O Lula ganha porque a direita não consegue apresentar uma alternativa minimamente viável para essa experiência de classe. O Lula é muito fraco, o discurso dele, no entanto, é o único que funciona, todos os outros são mais fracos.

FOLHA - A oposição a Lula, desde o início, foi marcada por crises. Desde a escolha entre Alckmin e Serra.
AB'SABER
- Às vezes temos impressão de que foi uma candidatura escolhida para perder. Certamente é como [o banqueiro] Olavo Setúbal falou na Folha. Não há nenhum constrangimento com a vitória de Lula. Os grandes poderes estão tranqüilos com a vitória de Lula. Para uma grande direita, Lula pode ser um dispositivo ideológico ainda mais interessante neste momento, ele pode conter ainda mais a crise social brasileira. E não é certo que o Alckmin possa fazer isso. O governo bonzinho, chuchu e gerencial do Alckmin em São Paulo terminou em PCC.

FOLHA - Como será um eventual segundo mandato de Lula? O programa de governo apontava, na semana passada, para maior controle da mídia. A situação fala em lacerdismo da imprensa.
AB'SABER
- Acho que Lula não vai ter nenhuma força para intervir em campos mais polêmicos. O segundo mandato vai ser um tipo de sarneyzação, algo como o segundo mandato de FHC, em que o Lula vai ter duas questões políticas essenciais: ou ele trabalha para enraizar o PT na estrutura do Estado brasileiro, como aconteceu com o PMDB, ou trabalha para salvar a pele dele e sair relativamente ileso de uma feroz luta pelo poder que vai se instalar logo.
Acho que ele vai trabalhar para se salvar de um processo grave de renovação da política. Essa sinalização de que Lula, se vencer, sairá como um tirano, quase um ditador, isso é propaganda, não é real. É evidente que sai fortificado, mas a composição política do segundo mandato é muito complicada.


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