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ELEIÇÕES 2006 / TENDÊNCIAS DO VOTO
Voto nulo é política radical, diz psicanalista
Tales Ab'Saber vê tentativa de setores desiludidos com o PT de pensar e atuar politicamente fora da esfera dos partidos
Intelectual afirma que Lula percebeu a falência do PT e passou a falar diretamente aos pobres, que perderam toda a confiança nas elites
FABIANE LEITE
DA REPORTAGEM LOCAL
Há algo novo para além da
apatia do cenário político brasileiro. A "suspensão das paixões" nesse campo criou demanda por uma política fora
dos partidos, da qual o voto nulo seria uma expressão, diz o
psicanalista Tales Ab'Saber, 41.
"Os cidadãos que votam nulo
estão radicalizando a política
num momento que ela tende a
desaparecer", disse durante a
entrevista realizada em seu
consultório, na tarde chuvosa
da última sexta-feira.
Membro do Departamento
de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pensador de esquerda que já declarou o fim do
PT, o psicanalista diz discordar
de "tudo" que o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral,
Marco Aurélio de Mello, tem
dito para estimular o voto.
"Voto nulo não é o voto desinformado, incapaz de avaliar,
desinteressado. Pelo contrário,
é o voto hiperinformado."
Leia a seguir trechos da conversa com Ab'Saber, que tratou
também da blindagem do presidente Lula da Silva (PT) e do
fracasso, até aqui, da oposição.
FOLHA - A revista "The Economist"
disse [na semana passada] que Lula
se beneficia de uma onda de bem-estar e apatia. O sr. concorda?
TALES AB'SABER - É uma apatia
que tem duas frentes. A desmobilização no espaço dos cidadãos, que é uma espécie de crise
de ideais, e uma apatia do lado
dos políticos, que não querem
atirar a primeira pedra porque
todos os partidos têm envolvimento com a corrupção.
Um elemento importante
para estabelecer essa espécie
de "suspensão das paixões" é a
liquidação do PT ao longo do
primeiro governo Lula. Se o PT
tivesse aproveitado politicamente a crise e radicalizado o
debate sobre o espaço da política e sua falência, nesse momento a política teria recuperado a
sua dignidade. E cabia ao PT fazer isso, o PT que era o estrangeiro. Mas o PT sacrificou suas
estrangeirice, seu pólo crítico,
ao convencionalismo da política brasileira. Vivemos um momento de grande desorientação
para os cidadãos que tinham
conexões políticas. É uma crise
com o PT, mas com o PSDB
também. O PSDB também não
se diferencia nesse processo de
corrupção endêmica.
FOLHA - Há grupos que fazem campanhas por democracia direta, regulamentar referendo, plebiscito. Dizem que isso seria um caminho para
dar um choque de política.
AB'SABER - Há um movimento
conceitual e simbólico que necessita pensar a política fora os
partidos, o que é novo. Essa é
uma região muito complexa,
que tanto pode ser uma proposição republicana, reformista,
como essa do professor [Fábio
Konder] Comparato, quanto
pode ser um começo de um trabalho crítico mais radical.
Nesse nível mais radical, poderia ser tanto um voto nulo republicano, para atacar a estrutura viciada da política, quanto
um voto nulo radicalmente crítico, quer dizer, um voto que
diz "o espaço do Brasil é inviável". Essa experiência negativa
se aproxima um pouco da experiência do que é [a facção criminosa] o PCC.
A negativa da política pode
ser a tradução de que não há
negociação mais com o espaço
público, do Estado. Aí a relação
do cidadão com o que seria o espaço da política é de confronto.
Isso é semelhante à facção, e essa uma consciência nova que
pode estar começando a surgir
e que pode ser importante para
o Brasil, um pouco mais de impaciência com um processo
que historicamente esboroa e
se torna república particular.
FOLHA - Essa reação, do voto nulo,
pode ser amadurecimento?
AB'SABER - Tem aí um voto Pilatos, não sujo minhas mãos,
que é um pouco imaturo. Mas a
posição conflitante, que percebe o isolamento do espaço da
política em relação à vida nacional pode ser madura, no sentido de romper com a ideologia
conservadora. Ela pode estar
formulando uma crítica mais
radical ao Brasil. Não é por acaso que é nesse momento de falência do PT que emerge o PCC.
O espaço da política que desaparece da vida social é ocupado com uma intensidade maior,
que pode ser a própria crítica.
Desse ponto de vista, o voto nulo não é nada ingênuo.
Há três dimensões do voto
nulo: um moral, banal, regressivo; um voto republicano negativo e um voto crítico radical.
FOLHA - Votam nulo pessoas com
boa educação, bom nível social, que
vivem nos grande centros, não é
uma contradição?
AB'SABER - Elas estão fazendo
diagnóstico de que não há alternativa pelo interior da trama
positiva e oficial da política.
Elas têm condição de fazer esse
diagnóstico e estão acreditando
nele. Elas estão identificadas
com o choque negativo. Vamos
acertar o espaço da política por
fora dele. Essa é a política que
pode ser interessante agora,
deslegitimar, isso é uma posição radical que começa a ganhar forma e prática.
Voto nulo não é o voto desinformado, incapaz de avaliar,
desinteressado, pelo contrário,
é o voto hiperinformado.
FOLHA - O ministro Marco Aurélio
comparou o voto nulo a uma avestruz que na tempestade de areia enfia a cabeça em um buraco.
AB'SABER - Eu não concordo
com nada do que diz o ministro.
Inclusive quando ele diz que
votar é ser patrão. É uma distorção radical do sentido do
que é espaço público, política,
igualdade de direitos. Essa não
é uma relação de submissão e
de poder direta, como é a de patrão e empregado. Nesses pequenos sintomas a gente vê a
crise do oficialismo da política.
Eles querem convocar o cidadão, e convocam por aquilo que
é antipúblico. O sentido é de
submissão, da república particular, a ideologia é a do mercado. É muito grave isso tudo.
FOLHA - Por que, nesse quadro, Lula foi poupado?
AB'SABER - Lula foi muito esperto ao perceber o afundamento do navio do PT. O partido correspondia ao interesse
mais radical das classes médias
esclarecidas. Ele rompeu com
essas forças, já no início do governo, depois ele deixou o PT
afundar. Com base no quê? Na
identificação afetiva.
Percebeu que o enraizamento dele na classe média crítica
tinha ruído e passou a falar diretamente, por meio da fantasia da proximidade, algo da velha cordialidade brasileira, com
as classe pobres, principalmente do Nordeste. Isso só funciona porque essas classes trabalhadoras perderam totalmente
a confiança na política das elites, não há alternativa do outro
lado, dos coronéis, dos bacanas
de São Paulo, que têm livros escritos em cinco línguas.
Essa é uma crise da direita. O
Lula ganha porque a direita
não consegue apresentar uma
alternativa minimamente viável para essa experiência de
classe. O Lula é muito fraco, o
discurso dele, no entanto, é o
único que funciona, todos os
outros são mais fracos.
FOLHA - A oposição a Lula, desde o
início, foi marcada por crises. Desde
a escolha entre Alckmin e Serra.
AB'SABER - Às vezes temos impressão de que foi uma candidatura escolhida para perder.
Certamente é como [o banqueiro] Olavo Setúbal falou na
Folha. Não há nenhum constrangimento com a vitória de
Lula. Os grandes poderes estão
tranqüilos com a vitória de Lula. Para uma grande direita, Lula pode ser um dispositivo ideológico ainda mais interessante
neste momento, ele pode conter ainda mais a crise social
brasileira. E não é certo que o
Alckmin possa fazer isso. O governo bonzinho, chuchu e gerencial do Alckmin em São Paulo terminou em PCC.
FOLHA - Como será um eventual
segundo mandato de Lula? O programa de governo apontava, na semana passada, para maior controle
da mídia. A situação fala em lacerdismo da imprensa.
AB'SABER - Acho que Lula não
vai ter nenhuma força para intervir em campos mais polêmicos. O segundo mandato vai ser
um tipo de sarneyzação, algo
como o segundo mandato de
FHC, em que o Lula vai ter duas
questões políticas essenciais:
ou ele trabalha para enraizar o
PT na estrutura do Estado brasileiro, como aconteceu com o
PMDB, ou trabalha para salvar
a pele dele e sair relativamente
ileso de uma feroz luta pelo poder que vai se instalar logo.
Acho que ele vai trabalhar
para se salvar de um processo
grave de renovação da política.
Essa sinalização de que Lula, se
vencer, sairá como um tirano,
quase um ditador, isso é propaganda, não é real. É evidente
que sai fortificado, mas a composição política do segundo
mandato é muito complicada.
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