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ENTREVISTA DE 2ª
GIOVANNI QUAGLIA
Para representante das Nações Unidas, bens apreendidos poderiam combater tráfico e consumo de drogas
Mais sofisticado, crime no Brasil dá "salto de qualidade"
ANTÔNIO GOIS
DA SUCURSAL DO RIO
Os criminosos brasileiros estão
ficando cada vez mais sofisticados. Têm bom nível de escolaridade, são bem inseridos na sociedade e planejam operações cada
vez mais milionárias, como o roubo do BC (Banco Central) em Fortaleza e o transporte de duas toneladas de cocaína dentro de bucho
bovino, rumo à Europa.
"Assim como já acontece em
países desenvolvidos, o crime no
Brasil está dando um salto de qualidade", afirma o italiano Giovanni Quaglia, 54, representante do
Escritório das Nações Unidas
contra Drogas e Crime no Brasil.
Ele acha preocupante esse quadro, mas vê nele uma boa oportunidade para combater o tráfico e o
consumo de drogas no país.
Sua sugestão é caçar os criminosos mais sofisticados, confiscar
seus bens e investir esses recursos
no tratamento de dependentes
químicos, como o modelo adotado na Europa. Isso reduziria a demanda por entorpecentes, e, portanto, o poder dos traficantes.
Quaglia já morou em países
com intensa produção de cocaína
e de ópio, como a Bolívia e o Afeganistão. Quando esteve à frente
do escritório do Paquistão (responsável também pelo Irã e pelo
Afeganistão) em 1996 e 1997, foi
encarregado pela ONU (Organização das Nações Unidas) de negociar com o regime Taleban afegão estratégias para reduzir o cultivo da papoula, de onde se obtém
ópio. Leia abaixo a entrevista que
ele concedeu à Folha:
Folha - A operação Caravelas, da
PF (Polícia Federal), apreendeu
duas toneladas de cocaína em bucho bovino e trouxe à tona um tipo
de traficante pouco visto na mídia
brasileira. O que há de diferente
nesse tipo de tráfico?
Giovanni Quaglia - A pessoa que
se envolve nesse tipo de crime tem
outro perfil em comparação com
o do traficante de favela.
É gente com nível superior, bem
inserida na sociedade, que usa
empresas legais de fachada, ganhando dinheiro de forma ilegal,
mas investindo parte desses recursos em empresas legais para
disfarçar sua origem.
Estamos falando então de um tipo de organização criminosa
muito mais sofisticada e próxima
do que já existe em outras partes
do mundo. É um crime feito por
pessoas de elite e de classe média
alta, que se encarregam de enviar
a droga da América do Sul para a
Europa e para os Estados Unidos.
Assim como já acontece em países desenvolvidos, o crime no
Brasil está dando um salto de qualidade. Recentemente, vimos
também o caso do roubo do Banco Central em Fortaleza. É um tipo de crime que exige muita organização e planejamento. No caso
de Fortaleza, o investimento inicial dos criminosos foi de mais de
R$ 1 milhão. Isso não tem nada a
ver com o crime de varejo que encontramos em favelas. É um outro tipo de estrutura e de organização. São pessoas com muito
mais capacidade de se infiltrar nas
esferas econômicas e do poder.
Folha - Mas não é um tipo de crime que sempre existiu no Brasil,
mas que nunca foi descoberto?
Quaglia - Não sei se sempre existiu, mas seguramente começa a ficar mais visível até por causa de
operações como essas da Polícia
Federal. É esse tipo de crime, mais
organizado e bem estruturado,
que é mais comum mundo afora.
O crime que usa a violência em favelas é uma exceção. Você não encontra isso no contexto europeu,
talvez apenas em alguns subúrbios dos Estados Unidos.
Folha - No caso brasileiro, no entanto, essa rede mais sofisticada
não está diretamente ligada aos
traficantes de favelas?
Quaglia - Eu diria, na verdade,
que são duas redes paralelas. Como mostrou essa última operação
da PF, a cocaína apreendida era
de ótima qualidade, 100% pura,
direcionada ao mercado europeu,
onde ela ganha alto valor agregado. O objetivo não era abastecer o
mercado local brasileiro. Era uma
operação muito bem organizada
no atacado. É um crime organizado com vinculação internacional.
Nas favelas, essa droga de primeira qualidade é muito mais rara. O que você encontra com mais
freqüência é uma cocaína menos
pura ou que é misturada para fazer crack para viciar rapidamente
os jovens mais pobres. É outra linha de negócio e as pessoas que
trabalham nele são muito menos
sofisticadas e mais violentas, sobretudo porque precisam defender um território por meio das armas para garantir a venda. São
duas estruturas diferentes.
Folha - Dá para dimensionar, em
termos de volumes negociados,
qual dessas duas estruturas movimenta mais dinheiro?
Quaglia - Eu poderia estimar,
sem estar muito longe da realidade, que de 75% a 80% do dinheiro
movimentado pelo crime organizado é proveniente desse crime
mais sofisticado.
A imprensa, no entanto, coloca
quase toda a sua ênfase nesse crime de varejo, das favelas, de comercialização de drogas dentro
das grandes cidades. Mas acho
que, no futuro, vamos ouvir cada
vez mais falar dessas pessoas com
nível superior, bem inseridas na
sociedade e que usam empresas
legais de fachada para lavar dinheiro do tráfico de drogas, de armas ou da pirataria. É preciso
mudar esse olhar da mídia, para
que ela focalize também o crime
sofisticado. Nesse crime, a violência é péssimo negócio, porque
chama atenção.
Não estou com isso minimizando a importância desse outro tipo
de tráfico. Todos sabemos que no
Brasil a violência entre gangues de
traficantes produz muitos homicídios e mortes por bala perdida.
Em vários países, no entanto,
existe uma nova cultura dos órgãos de repressão, que se preocupam mais em ir atrás de grandes
traficantes e confiscar seu dinheiro e suas propriedades para financiar a recuperação de dependentes químicos e, dessa forma, diminuir a demanda.
Esse crime de varejo sempre vai
existir enquanto houver demanda. É por isso que trabalhar para
reduzi-la é a melhor forma de diminuir o poder desse tráfico.
Folha - O Brasil tem feito isso?
Quaglia - Acho
que no Brasil há
uma falta de definição da melhor
forma de tratar os
dependentes. Hoje, o que acontece
é que eles acabam
sendo tratados
por organizações
da sociedade civil.
Há pouco investimento e compromisso das políticas públicas no
tratamento da dependência química. Esse é o grande
desafio que eu vejo para o Brasil. É
preciso construir
serviços de saúde
pública que atuem
nesse sentido. Foi
o que fizeram os
países europeus.
Folha - Mas trouxe algum resultado
a esses países? Essa
linha, por exemplo, não é a mesma
seguida pelos Estados Unidos?
Quaglia - Nos
Estados Unidos, a
principal política
foi a de prender o
traficante e o
usuário. Foi por
isso que o número
de presos lá dobrou nos últimos dez anos desde a
introdução da política de tolerância zero. Os EUA preferiram essa
opção porque a sociedade é diferente. A Europa decidiu investir
nos serviços de tratamento de
saúde pública. É uma política
mais em linha com a cultura humanista da ONU.
Posso dizer que, seguramente, a
política européia gerou menos
violência na sociedade do que a
norte-americana ou a de outros
países que usaram a política de
encarceramento. O que acontece
é que o preso sai da cadeia pior do
que entrou. É por isso que preferimos que o usuário seja tratado como um problema de saúde pública, enquanto o traficante é um
problema de polícia.
Folha - Sempre que ações desse
tráfico violento chocam o país, parte da sociedade costuma comparar
a situação brasileira à da Colômbia
ou à da Bolívia. O senhor, que já foi
chefe do escritório da Bolívia e conhece bem a Colômbia, concorda
com essa comparação?
Quaglia - É difícil comparar a situação do Brasil com a da Colômbia e a da Bolívia. Morei quatro
anos na Bolívia e visitei várias vezes a Colômbia. São dois países de
intensa produção de coca e de
transformação da folha em cocaína. As organizações criminosas lá
estão diretamente vinculadas à
transformação da folha de coca
em cocaína, para depois comercializar o produto.
A situação do Brasil é diferente.
O que está acontecendo aqui é
que está havendo um incremento
do consumo. Antes, este era um
país praticamente apenas de trânsito da droga, com baixo consumo. O aumento do consumo foi
intensificando as brigas entre grupos de traficantes por causa da
disputa de mercado. Para manter
ou ganhar mais pontos, os traficantes passaram a comprar mais
armas, que foram ficando cada
vez mais sofisticadas. Foi sem dúvida uma evolução muito negativa, mas eu diria que o Brasil caminha mais para o perfil de consumo dos Estados Unidos e da Europa do que o de produção, como
na Colômbia e na Bolívia.
Folha - Só que, assim como acontece na Bolívia e na Colômbia, podemos dizer também que no Brasil
há territórios em que o poder público perdeu sua capacidade de se
impor. Nesse sentido, não estamos
próximos desses países?
Quaglia - Em parte sim, porque
se trata de uma questão de falta de
controle territorial. Aqui, isso
acontece muito mais nas periferias das grandes
cidades ou em favelas. No caso de
países produtores,
como Bolívia, Colômbia ou Afeganistão, é um problema muito
maior em áreas
rurais, mas, no
fundo, trata-se
também da dificuldade do governo de impor a lei.
Em todos esses
países, faltam alternativas econômicas e sociais,
mas há também o
interesse dos traficantes em manter
o negócio.
Folha - Na Europa e na Ásia, além
do consumo de
drogas tradicionais, como a maconha e a cocaína, há
a preocupação
também com o aumento das drogas
sintéticas? O Brasil
deveria se preocupar também com
isso?
Quaglia - Graças
a Deus, estamos
longe dos níveis
verificados na Europa, nos Estados
Unidos e em alguns países asiáticos. O que nos
preocupa no caso brasileiro é a
possibilidade de essas drogas sintéticas passarem a ser produzidas
no Brasil, o que diminuiria seus
custos e poderia provocar um aumento do consumo. Enquanto a
produção for concentrada na Europa, a massificação ficará mais
difícil no Brasil por a droga estar
acessível apenas a um percentual
limitado da população de maior
poder aquisitivo.
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