São Paulo, terça, 3 de novembro de 1998

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CELSO PINTO
Os vivos e os esqueletos

Virou moda, recentemente, dizer que o governo Fernando Henrique Cardoso não foi, afinal, culpado pela deterioração dos resultados fiscais. A dívida líquida subiu, é verdade, mas isso teria sido consequência apenas do excesso de honestidade, já que o governo acabou incorporando nas contas pecados do passado: os famosos esqueletos fiscais.
Seria ótimo para o governo se fosse verdade, mas não é. Para quem tiver dúvidas, vale a pena dar uma olhada na íntegra do "Programa de Ajuste Fiscal", documento que acompanhou o pacote recém-anunciado.
No documento, estão listados os esqueletos fiscais absorvidos no governo FHC. Alguns são claramente despesas feitas por governos passados. Outros, nem tanto. Mesmo tendo sua origem no passado, continuaram a crescer, ou foram agravados no governo FHC antes de serem reconhecidos na dívida.
A capitalização do Banco do Brasil engoliu R$ 15,3 bilhões. A securitização da dívida agrícola levou à emissão de R$ 3,8 bilhões em títulos. A dívida da Rede Ferroviária Federal com o INSS foi de R$ 1,4 bilhão. O FCVS (Fundo de Variação de Compensações Salariais) já levou à emissão de R$ 3,6 bilhões em títulos. Moedas de privatização de empresas estatais foram transformadas em títulos, num total de R$ 8,7 bilhões. Foram absorvidas dívidas de R$ 2,6 bilhões da Sunamam e R$ 4,1 bilhões da Siderbrás.
Tudo isso somado, chega-se a R$ 39,5 bilhões. Ainda existem, nas contas do governo, mais R$ 23,3 bilhões em esqueletos a serem incorporados na dívida líquida do governo nos próximos três anos.
É louvável que o governo, por razões de transparência, tenha acrescentado ao estoque da dívida líquida buracos fiscais que existiam, mas não eram contabilizados. Pode-se argumentar que o grosso de seu impacto fiscal foi feito no passado, embora, ao transformar essas velhas dívidas em títulos do governo, pagando juros estratosféricos, o governo tenha dado um vigor inesperado a esse débito. Não dá para dizer, contudo, que eles explicam a deterioração fiscal do governo FHC.
Uma das razões é que, se houve esqueletos inesperados do lado da despesa, houve dinheiro extraordinário no lado da receita, por meio da privatização. Usando o mesmo documento como fonte, nos quatro anos de governo FHC a dívida líquida federal foi reduzida em R$ 25,4 bilhões pelo uso da receita de privatização. A receita total de privatização foi muito maior, só que essa foi a parcela usada para abater a dívida.
Ainda sobram R$ 14,1 bilhões de esqueletos não compensados por receitas de privatização, mas isso equivale a algo em torno de 1,5% do PIB. No período, contudo, o salto da dívida interna líquida foi muito maior do que esse. Em 1994, ela era de 29,2% do PIB; em junho deste ano, havia chegado a 38,6%, e a previsão oficial é que bata em 41,9% do PIB no final deste ano.
Em outros termos, a dívida líquida dará um salto fantástico de 12,7% do PIB em apenas quatro anos (sendo 7,3% apenas neste ano). Somando os esqueletos e descontando a privatização, só se consegue explicar 1,5% dessa subida. Falta explicar o equivalente a uns R$ 100 bilhões ao PIB de hoje.
Além da falta de disciplina fiscal e do impacto perverso do fim da inflação como compressor de despesas orçamentárias, uma boa parte da explicação é de lavra do governo FHC: a fantástica taxa de juros praticada. Para citar o mesmo documento, os juros reais pagos pelo setor púbico elevaram-se da média de 3,3% do PIB no período 91-94 para 4,8% no período 95-98. Neste ano, pode chegar a algo entre 7,5% e 8% do PIB.
E por que os juros subiram? "A elevação da taxa de juros real, usual em processos de estabilização e necessária em razão da frágil situação fiscal, foi agravada em virtude de três crises financeiras internacionais ocorridas em 95, 97 e 98", explica o documento. Quer dizer, fomos atropelados pelo mundo.
Faltou o documento dizer que as três crises só exigiram taxas indecentes de juros porque o governo não fez o ajuste fiscal que prometera fazer desde 93 e porque quis defender, a qualquer custo, uma taxa de câmbio sobrevalorizada. Culpa dos vivos, em Brasília, e não dos esqueletos.




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