São Paulo, segunda-feira, 04 de fevereiro de 2008

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ENTREVISTA/ DANILO TÜRK

Ricos não podem passar sermão nos emergentes

Presidente da Eslovênia, na presidência de turno da UE, prepara cúpula com América Latina que discutirá aquecimento global

CLÓVIS ROSSI
ENVIADO ESPECIAL A LIUBLIANA

A UNIÃO EUROPÉIA , o formidável conglomerado de 27 países, quer estabelecer com a América Latina um diálogo intenso em torno do combate ao aquecimento global.
É o que informa o presidente da Eslovênia, Danilo Türk (pronuncia-se "Tirk"), por sua vez presidente de turno do bloco europeu no primeiro semestre de 2008. É o primeiro país ex-comunista a presidir a UE, além de ter sido o primeiro a adotar o euro, em 2007.

O entendimento com a América Latina terá como ponto alto a Cúpula União Européia/América Latina e Caribe, prevista para maio no Peru. Mas a Europa (e o mundo desenvolvido) "não pode passar sermões no mundo em desenvolvimento a respeito da redução desse tipo de gases [causadores do efeito estufa]. Primeiro, alguma redução tem que se dar no mundo desenvolvido", afirma Türk.
É para tratar da cúpula que Türk irá ao Brasil, possivelmente em abril. O presidente recebeu a Folha na manhã da última terça-feira, no palácio do governo. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

 

FOLHA - Como o senhor explica o fato de que a Eslovênia tenha passado em um período de tempo relativamente curto (menos de 20 anos) do comunismo para o euro de uma maneira pacífica, numa região explosiva como os Bálcãs? DANILO TÜRK - Há várias razões. Primeiro, cerca de 20 anos é um longo período de tempo. No fim do século passado e no começo deste, o tempo vem passando muito rapidamente. Segundo, a Eslovênia é um país que tinha o seu próprio desenvolvimento mesmo antes [do fim do comunismo].
Para nós, havia uma versão suave de comunismo. Por muitas décadas, a Eslovênia teve relações muito próximas com países da União Européia. Relações econômicas, culturais, havia liberdade de movimento. Havia uma porção de programas de televisão da Áustria, Alemanha e Itália aos quais podíamos assistir. Assim, econômica e culturalmente, a Eslovênia esteve muito bem conectada com a Europa por décadas, a partir do princípio dos anos 60, quando o regime começou a se abrir.

FOLHA - O jornal "The International Herald Tribune" publicou que há, na Eslovênia e em outras antigas repúblicas iugoslavas, uma "iugonostalgia". Há mesmo? Se sim, o sistema de bem-estar social na antiga Iugoslávia era tão bom quanto o da Europa Ocidental? A transição preservou esse modelo?
TÜRK
- Não acho que sentimentos de "iugonostalgia" sejam muito disseminados. Mas existem. As pessoas que recordam os velhos tempos se lembram da parte boa deles. Não gostam de se lembrar de aspectos menos agradáveis. E houve vários aspectos bons no velho sistema. Por exemplo, um sentido de igualdade entre as pessoas, que era de certa forma artificial mas também havia uma parte que era real.
Empregos estavam disponíveis, os cuidados com a saúde eram gratuitos, todo mundo podia conseguir casa, ainda que pequena e não luxuosa, a educação também era grátis. As pessoas não eram ricas, mas também não eram infelizes. A Iugoslávia representava um sentimento de vida fácil para algumas pessoas.

FOLHA - No seu discurso de posse, o sr. disse que a Eslovênia deveria olhar para o futuro, mas respeitando o passado. O sr. poderia explicar melhor essa idéia?
TÜRK
- Há na Eslovênia divisões políticas do passado que não foram superadas. Durante a Segunda Guerra Mundial, houve lados em campos opostos, houve um grau de colaboração de certas forças políticas com as forças de ocupação (a Alemanha nazista e a Itália fascista). Isso deixou marcas profundas no psiquismo dos eslovenos, que não superaram esses traumas históricos completamente. Como presidente, tenho que ser claro ao dizer que temos que olhar para o futuro e sermos capazes de discutir nossa história com a mente aberta.

FOLHA - Falando do futuro, como o sr. imagina que a Eslovênia será afetada pela presente crise financeira?
TÜRK
- A Eslovênia é muito integrada com o mundo, logo não pode estar protegida dos ventos externos. Exporta mais de 60% de seu Produto Interno Bruto. Como país pequeno, é mais conectado com o resto do mundo do que países grandes, que têm grandes mercados internos e são menos afetados.
Nós começamos a sentir os efeitos de preços altos de petróleo e alimentos já no ano passado. A inflação entre julho de 2007 e agora subiu para mais do que 5%, o que é muito para padrões europeus. Houve pressão dos sindicatos para aumentar os salários. Por sorte, os eslovenos mostraram um grau de maturidade e todas essas pressões foram resolvidas por acordo entre o setor privado e os sindicatos e o governo e os sindicatos do setor público.

FOLHA - Mudando o assunto para os "pontos quentes", como Kosovo e Sérvia. Qual é o ponto de vista da Eslovênia como presidente de turno da UE neste primeiro semestre?
TÜRK
- Nossa primeira prioridade é trabalhar para uma posição conjunta dos países da UE e por uma política coerente. Quanto ao desenlace da questão de Kosovo [Província que quer independência da Sérvia], o relatório de Marti Ahtissari [ex-presidente finlandês] deu uma boa indicação sobre como as coisas podem vir a ser.
Uma independência condicionada foi proposta e acho que se deve pensar em independência com certas qualificações, como um forte envolvimento internacional em várias áreas, como segurança, crime organizado e proteção de minorias. Dessa forma, não seria adequado falar de plena soberania, de independência total, no sentido usual dessa palavra.
Não acho que autonomia, no entanto, seja o suficiente. É rejeitada muito fortemente por todos os albaneses, grande maioria da população de Kosovo. E é preciso entender que o problema é resultado de repressão e violência contra os albaneses de Kosovo por décadas. São circunstâncias brutais para os albaneses de Kosovo, e é preciso entender porque eles rejeitam o conceito de autonomia tão forte e definitivamente.

FOLHA - O sr. irá ao Brasil nos próximos meses. Qual é o objetivo principal da visita?
TÜRK
- A idéia é ajudar na preparação da cúpula entre a União Européia e a América Latina/Caribe [em maio, no Peru]. Esse é um dos principais projetos da presidência eslovena da UE. Trata-se de dar passos adicionais na já bem estabelecida cooperação entre a UE e a América Latina.
Isso é importante porque, muito freqüentemente, a agenda da UE é dominada por assuntos conjunturais que estão todos na própria UE. Mas a Europa é um ator global e não pode ser tal sem desenvolver relações adequadas com a América Latina. Além disso, a Europa tem que se dar conta de que o seu sucesso futuro e sua sobrevivência dependem de sua habilidade para desempenhar um papel global.

FOLHA - E na cúpula, quais serão os principais itens que estarão na declaração final e, principalmente, que ações poderão ser propostas já que, uma vez, o presidente da Colômbia disse que há uma espécie de fadiga de cúpulas?
TÜRK
- Nós certamente gostaríamos de levar o processo de preparação da cúpula na direção de uma cooperação efetiva e de ações. Há muitas áreas em que essa cooperação pode crescer. Há certas prioridades globais pela própria natureza, como aquecimento global ou temas ambientais.
Não podemos fugir desse elemento. Tem que haver um mapeamento que permita que o processo de Bali seja bem sucedido. Não se trata de falar a respeito de alguma visão esotérica do futuro, mas de falar a respeito da sobrevivência do planeta.
É uma enorme tarefa para este ano e o próximo se se quiser preparar o processo pós-Kyoto, que levará à redução da emissão de gases do efeito estufa. Obviamente, o mundo desenvolvido não pode passar sermões para o mundo em desenvolvimento a respeito da redução desse tipo de gases. Primeiro, alguma redução tem que se dar no mundo desenvolvido e liderança tem que ser exercida. Este é um momento decisivo. Se não formos bem sucedidos agora, o planeta sofrerá amargamente e pode até enfrentar um colapso.
Além disso, a agenda da cúpula tem itens que são importantes para a própria América Latina e para os quais a ajuda européia pode ser importante, como educação. Se a Europa conseguir demonstrar que pode ser um parceiro útil para os países latino-americanos no desenvolvimento de sistemas educacionais no nível necessário para um desenvolvimento mais rápido da região, seria uma boa contribuição.

FOLHA - A cúpula de Lima vai se realizar em um momento muito importante para a Rodada Doha de negociações comerciais. Os brasileiros e latino-americanos em geral reclamam muito do famoso protecionismo europeu na área agrícola. A cúpula poderia produzir, digamos, um impulso político para que a rodada finalmente seja destravada?
TÜRK
- Certamente, espero que sim. Não quero prejulgar o processo de negociação, mas o que gostaríamos de ver é substancial progresso até a Páscoa (fim de março) e então algum acordo nos meses seguintes.
É difícil predizer. A Europa não é o único ator. Há os Estados Unidos. Temos que ver até que ponto a administração Bush está preparada para se mover na direção de um acordo. Isso teria um efeito favorável na Europa. São elementos que estão atados um ao outro e, avançando juntos, então países como Brasil, Índia e China podem definir quão longe querem ir. Tudo está interligado.
Mas estou certo de que a UE está pronta para se engajar na fase final de negociações, se a dinâmica se mostrar correta.


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