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Entrevista da 2ª
Gilberto Leifert
Restrições à publicidade contrariam a Constituição
Medidas para regulamentar anúncio de bebidas alcoólicas ferem liberdade de expressão e põem em xeque a independência da mídia, diz presidente do Conar
GUILHERME BARROS
COLUNISTA DA FOLHA
CRISTIANE BARBIERI
DA REPORTAGEM LOCAL
Nos próximos dias, a Anvisa (Agência Nacional de
Vigilância Sanitária) deverá editar uma nova regulamentação com restrições severas à propaganda de bebidas alcoólicas. A veiculação de anúncio de bebidas
no rádio e na televisão deverá ser proibida entre as 8h
e as 20h e, em jornais, revistas e internet, a propaganda terá de ser acompanhada de advertências em relação aos efeitos do consumo de álcool.
Atento às discussões a respeito dessa nova regulamentação, o Conar (Conselho de Auto-Regulamentação Publicitária), o órgão que regula a publicidade no país, formado principalmente por profissionais de
propaganda e mídia, ameaça ir
à Justiça para protestar contra
essa iniciativa da Anvisa. As
cervejarias, as mais atingidas
com a nova regulamentação, já
tinham feito essa ameaça.
O presidente do Conar, Gilberto Leifert, 56, afirma que a
portaria da Anvisa é inconstitucional, e é isso que deverá ser
argüido na Justiça. Ele defende
que o mercado continue submetido à auto-regulação.
Na opinião de Leifert, as advertências que a Anvisa pretende impor são "dramáticas" e
afastarão os anunciantes, o que
colocaria em risco a independência da mídia.
Bacharel em direito pela Universidade de São Paulo, Leifert
é diretor de relações com o mercado da Rede Globo. Trabalhou como jornalista em "O Estado de S. Paulo" e "Jornal da Tarde". Foi também diretor da
MPM Propaganda e da agência
de relações governamentais
Semprel. A seguir, trechos da
entrevista:
FOLHA - Como o senhor vê essa
provável restrição da Anvisa à publicidade de bebidas alcoólicas?
GILBERTO LEIFERT - A primeira
consideração é que as políticas
públicas que podem ser aprimoradas merecem o apoio da
sociedade. Há bastante espaço
para aprimorar a questão de
controle de consumo abusivo
do álcool. A posição do Conar se
baseia em dois pilares. O primeiro é a questão da liberdade
de expressão comercial, garantida pela Constituição e que
tem no artigo 22, inciso 29, a
garantia de que apenas o Congresso poderá impor restrições
ou legislar sobre publicidade.
FOLHA - Significa que o Conar irá à
Justiça se a portaria for publicada?
LEIFERT - Teremos de analisar
quem tem legitimidade para argüir a questão da inconstitucionalidade. O que se sabe é que
anunciantes, agências e veículos afetados se incomodarão e
irão buscar seus direitos. Porém não excluímos a hipótese
de futuramente o Conar adensar a causa porque se trata de
matéria constitucional.
FOLHA - O sr. mencionou dois pilares. Qual é o outro?
LEIFERT - A publicidade é a face
visível de uma questão mais
complexa. É muito simples,
aparentemente, eliminar a publicidade do rádio, da televisão
e ampliar restrições à publicidade em geral, como à mídia
impressa, ao outdoor etc. Só
que o produto continuará disponível na prateleira do supermercado e nas estradas.
Os menores continuarão
tendo acesso ao produto, embora a Lei de Contravenções
Penais, desde 41, e o Estatuto
da Criança e do Adolescente,
em 90, tenham proibido a venda de bebidas alcoólicas a menores de idade. Não se tem notícia de estabelecimento comercial que tenha tido seu alvará cassado ou de comerciante
punido pela venda de bebidas
alcoólicas a menores.
FOLHA - Mas a propaganda não estimula o acesso às bebidas?
LEIFERT - A propaganda, que é a
face mais visível da questão, será facilmente controlada a pretexto de evitar o estímulo. Mas
o acesso ao produto, que é o que
pode causar males à saúde dos
menores, continuará fácil.
FOLHA - Não é possível usar o raciocínio inverso? Pesquisas recentes indicam que o percentual da população brasileira que fuma caiu muito
depois que as propagandas de cigarro foram proibidas. E os consumidores continuam tendo acesso a eles
nos supermercados, bares...
LEIFERT - As pesquisas recentes
indicam que o consumo caiu,
porém não foi do ano 2000 para cá, quando a publicidade de
cigarros foi proibida. A queda
tem acontecido há 20 anos. Foi
uma mudança de comportamento causada por hábitos
educacionais de longa data.
FOLHA - A redução da criminalidade em Diadema (na Grande São Paulo), causada pelo fechamento de bares depois das 23h, não é um bom
argumento para restringir o acesso
a bebidas alcoólicas?
LEIFERT - O ex-secretário Nacional da Justiça Luiz Eduardo
Soares afirmou, num debate no
Congresso sobre alcoolismo e
violência na Comissão de Seguridade Social, que Diadema foi
um projeto-piloto que abrigou
uma série de medidas. O projeto envolveu também educação
escolar, atendimento sanitário,
de pronto-socorro e uma série
de ações conjugadas que acabaram reduzindo a criminalidade.
FOLHA - Como é a restrição à publicidade de bebidas em outros países?
LEIFERT - Temos exemplos variados. A Comunidade Econômica Européia está estudando
o assunto e aguardando a
orientação da OMS [Organização Mundial de Saúde]. Já os
EUA são, tradicionalmente, um
país que executa políticas públicas de saúde bastante avançadas, deixando o assunto para
auto-regulamentação. A publicidade de cerveja nos EUA não
é proibida, e a de bebidas alcoólicas em geral é decisão das redes de televisão. A questão
comporta um tratamento diferenciado, e nós, do Conar, nos
esforçamos para merecer a
confiança dos consumidores e
das autoridades para que o sistema misto de controle, que é
legislação e auto-regulamentação, seja adotado com intensidade cada vez maior.
FOLHA - Por quê?
LEIFERT - O Brasil é um país que
tem leis demais. O que se sabe é
que existe uma crença de que
apenas a edição de novas leis
proporciona avanços e milagres. Sabemos, entretanto, que
na prática não bem é assim. Sobretudo em relação a hábitos
ancestrais, como é o caso do
consumo de bebidas alcoólicas.
Um aspecto que convém destacar é que a atuação da Anvisa,
baseada em iniciativas próprias
e resoluções, alcançará não
apenas bebidas alcoólicas, mas
em seguida refrigerantes, alimentos e medicamentos.
Essas consultas públicas já
foram realizadas e a agência já
prepara a edição de resoluções
que, em igualdade de condições
às de bebidas alcoólicas, têm o
defeito de serem inconstitucionais e de ferirem alguns princípios que são desejáveis na legislação: necessidade, razoabilidade e proporcionalidade.
Uma das propostas que se
discutiram em relação a bebidas alcoólicas é que todas as notícias, os comentários, os programas de televisão sobre vinhos, por exemplo, deveriam
trazer dentro do conteúdo advertências ao consumidor.
FOLHA - O que isso significa?
LEIFERT - Quando o Estado impõe ao anunciante o dever de
veicular as advertências falando mal de seu produto, ele alcança, por via indireta, a proibição da propaganda.
FOLHA - Por quê?
LEIFERT - As advertências que o
governo pretende impor ao
anunciante são tão dramáticas,
tão pouco razoáveis, que ele vai
se afastar da mídia. A proibição,
indiretamente, será alcançada.
FOLHA - Qual será a conseqüência?
LEIFERT - A liberdade de iniciativa e de expressão comercial
serão afetadas. Esses produtos
são lícitos e seguros para o consumo. Tanto que o governo autoriza a fabricação, a distribuição, a comercialização e arrecada pesados impostos sobre eles.
FOLHA - Qual a motivação da Anvisa com as restrições à propaganda?
LEIFERT - O artigo 220, parágrafo 4º, da Constituição determina quais as categorias sujeitas
às restrições legais. São elas tabaco, bebidas alcoólicas, medicamentos, tratamentos de saúde e defensivos agrícolas. Curiosamente, alimentos e refrigerantes não estão indicados
na Constituição como passíveis
dessas restrições. No entanto a
agência toma a iniciativa de
usar o mesmo meio, impróprio,
uma resolução de diretoria colegiada, para alcançar o fim,
restrição ou proibição.
FOLHA - A motivação seria apenas
constitucional?
LEIFERT - A agência tem olhos
que vão além do que a Constituição admitiria. Primeiro, ao
adotar vias impróprias, já que a
resolução tem de ser uma lei do
Congresso. Depois que está alcançando, em relação a alimentos e refrigerantes, categorias
que não comportam, pela
Constituição, o tratamento que
a agência pretende dar.
FOLHA - Haveria alguma motivação política na decisão da Anvisa?
LEIFERT - Há um açodamento
de pessoas e profissionais que
têm preocupação com a saúde
em adotar medidas heróicas
que causarão sérios danos à ordem jurídica. Se a Constituição
garantiu à publicidade liberdade de expressão comercial e se
só por lei as restrições podem
ser impostas, a liberdade que a
agência tem ao propor a edição
dessas regras acaba por causar
uma profunda perturbação no
direito do consumidor à informação e no direito de expressão comercial dos anunciantes.
FOLHA - O senhor vê alguma semelhança com bandeiras que promoveram outros ministros da Saúde,
como o caso dos genéricos?
LEIFERT - Iniciativas como a
proibição da propaganda podem conferir notoriedade aos
políticos nas novas legislaturas.
Novos parlamentares costumam apresentar projetos que
já foram arquivados ou que ainda tramitam e podem proporcionar notoriedade.
O ministro da Saúde [José
Gomes Temporão] apóia a iniciativa da Anvisa e, mais do que
isso, parece tê-la encarregado
de executar a tarefa de impor as
restrições à publicidade. Quando o ministro fala sobre o conteúdo da publicidade, me parece que é o Executivo pretendendo censurar o conteúdo dos
anúncios, o que é inadmissível
porque a censura foi banida.
FOLHA - Essa proibição pode fazer
o anunciante migrar para mídias como internet, jogos ou outros veículos mais acessados pelos jovens?
LEIFERT - Não. As cláusulas de
advertência que estão sendo
propostas afastarão o anunciante. Talvez o governo se torne a única voz a sugerir, a recomendar, a determinar o que se
pode ou não consumir. Ele poderá tanto calar o anunciante
como, por meio de campanhas,
dizer o que pode ou não fazer.
Não faz nenhum sentido alguém falar mal de si mesmo,
pagar para fazer sua autodetração. Uma das propostas para
refrigerante é dizer o nome da
marca e destacar que ele causa
diabetes. Essa empresa vai se
afastar da mídia.
Além do governo, os maiores
anunciantes do país são a indústria de alimentos, de refrigerantes, farmacêutica, varejo.
Os setores visados, coincidentemente, são os grandes
anunciantes. Na condição de
quem se preocupa com o direito político do acesso livre à informação e à informação comercial, estou preocupado em
verificar que a mídia, que é sustentada pela livre iniciativa, pelos diferentes setores da economia, sendo silenciada, tornará o
governo, que é um grande
anunciante, ainda mais forte e
poderoso do que já é.
FOLHA - O papel do Conar é ativo
para regulamentar essas questões
que preocupam a sociedade e que
estão envolvidas nessas proibições?
LEIFERT - Em 2003, por exemplo, o Conar condicionou que
os modelos que aparecem em
propagandas de cerveja tenham mais de 25 anos de idade
e aparentem ter mais de 25
anos. A propaganda mudou sua
face a partir de 2003.
FOLHA - Não há muitas pesquisas
que indicam que o álcool causa sérios prejuízos à sociedade?
LEIFERT - Os dados a respeito de
delinqüência, óbitos e danos
resultantes do álcool são muito
imprecisos no Brasil. As pesquisas existentes em matéria
de acidentes de trânsito, por
exemplo, não apresentam dados. Da mesma forma, pesquisas sobre consumo impróprio
envolvendo adolescentes e
crianças são conduzidas pelo
renomado professor da Universidade Federal de São Paulo
Ronaldo Laranjeira, que é um
ativista e francamente contrário à publicidade de bebidas alcoólica. De modo que há de fazer uma ponderação a pesquisas conduzidas por ativistas.
FOLHA - A propaganda de bebidas
aumenta o consumo?
LEIFERT - Os dados do Centro
Brasileiro de Informação sobre
Drogas Psicotrópicas da Escola
Paulista de Medicina indicam
que de 5% a 10% da população
adulta brasileira enfrenta problemas de saúde em relação ao
álcool. Diante da população do
Brasil, é um número assustador. Porém imaginar que, numa democracia, 90% das pessoas serão privadas da informação a respeito de um produto
porque 10% não têm conduta
adequada é absurdo. Seria mais
fácil educar os 5% ou 10%.
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