São Paulo, domingo, 04 de julho de 2004

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NO PLANALTO

A serviço de Lula, Abin vigia o quintal do PT

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ronalda Barreto é uma petista de mostruário. Filiada ao PT, milita no sindicalismo educacional. Integra a diretoria da Associação de Docentes da Universidade do Estado da Bahia. Desapontada com o governo Lula, Ronalda ajudou a organizar um fórum para debater o ensino. Deu-se em Salvador, nos dias 26 e 27 de junho. Atraiu professores, funcionários e alunos de universidades baianas.
O Ministério da Educação foi convidado a enviar representante. Ninguém apareceu. O governo apanhou pelas costas. Concluiu-se que Brasília patrocina a "degradação mercantilista da educação superior".
Ronalda foi uma das oradoras mais enfáticas. O timbre enérgico a fez personagem involuntária de um documento confidencial. Seu nome e um resumo do que disse constam do "relatório de inteligência número 0119/8140".
O texto ocupa uma folha de papel. Traz no alto o timbre da Agência Brasileira de Inteligência. Redigiu-o um espião lotado nos escritórios da Abin em Salvador.
Na terça-feira, informada pelo repórter de que fora espionada, Ronalda admirou-se: "O encontrou foi público. Não precisavam espionar. Estou chocada".
Como Ronalda, petistas e assemelhados têm sido vigiados pela máquina de bisbilhotice estatal em todo o país. Há espiões grudados nos sem-terra e nos sem-teto, nos sindicatos e nas ONGs.
O repórter perguntou ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência por que a Abin do PT varre o quintal do PT. A resposta veio por escrito. Diz que cabe à Abin obter e analisar dados "destinados a assessorar o presidente da República". Daí a necessidade de "conhecer anseios, aspirações e posições dos diversos grupos sociais".
Um cheiro de queimado emana dos subterrâneos da Abin. Trava-se ali uma guerrilha da farda contra o paletó. Sobreviventes do velho SNI, treinados no vale-tudo da linha-dura, tentam prevalecer sobre analistas recrutados por concurso público na gestão FHC.
A turma do paletó acha que o grupo da farda leva muito lixo aos arquivos da Abin. Defende-se uma renovação da pauta. Enquanto se ocupa de Ronaldas, a agência se esquece de produzir, por exemplo, informes sobre os riscos de embargos a produtos brasileiros no exterior. Como os que foram impostos pela China (soja), Rússia e Argentina (carne).
A velha guarda receia que a pregação mudancista oculte um desejo de expurgo. Temendo o desemprego, a farda foi à trincheira. De início, Lula negligenciou o problema. Só acordou há um mês, quando estilhaços do tiroteio começaram a invadir-lhe o gabinete.
Nomeou-se para a direção da Abin Paulo Marcelo Lima e Silva, delegado da Polícia Civil de São Paulo. É velho conhecido de Lula. Em sabatina no Senado, na semana passada, Lima e Silva superfaturou as facções que se digladiam na Abin. São cinco grupos, disse. Só há notícia de dois.
O novo diretor disse, de resto, que vai adotar uma política de "transparência". A turma do paletó avisa que o pessoal da farda tem horror a tudo o que é translúcido. Abriram-se apostas em torno do tempo de permanência de Lima e Silva no novo cargo.
Sob Lula, o Planalto é reverencioso com a turma da farda. No ano passado, ao anunciar em seu "Boletim de Serviço Confidencial" a aposentadoria do coronel Rubens Robine Bizerril, a Abin cobriu-o de encômios.
Conforme noticiado aqui, recordaram-se os "anos de bons serviços" prestados por Bizerril "à inteligência brasileira". Ingressara no SNI na década de 70. Antes, chefiara uma cadeia militar em Goiás, em cujas dependências o estudante Ismael de Jesus Silva foi torturado até a morte.
Na semana passada, o repórter obteve um documento "confidencial" assinado por Bizerril em junho de 1974. Chama-se "relatório de viagem". Anota o resultado de uma missão confiada ao então major Bizerril e ao sargento Swamy Paiva Figueiredo.
"Sentindo o DOI-Codi a necessidade de elaboração de um plano de busca de informes, verificou-se a possibilidade de instalação de uma base em Porto Nacional", anota o relatório. Funcionaria como "um posto avançado no norte de Goiás".
Fantasiados de funcionários do Inan (Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição) Bizerril e Figueiredo passaram 24 horas na cidade goiana. Recomendaram que o ninho de espionagem fosse alojado em imóvel da prefeitura local, sob fachada falsa de escritório do Inan.
Embora curta, a viagem foi prolífera. Em três laudas e meia de relatório, os espiões se ocupam até da sexualidade do clero local. Informaram que um padre "é homossexual e coabita com um seminarista". Outro, "é bem conceituado" e deveria "ser recrutado" como "contato valioso para o Comando Militar do Planalto".
Os quadros da Abin continuam apinhados de agentes à Bizerril. Pessoas cujo histórico de "bons serviços prestados à inteligência brasileira" dá uma idéia do tamanho da encrenca em que se transformou o serviço de espionagem oficial. Virou um barco a três: o primeiro olha para um lado. O segundo rema na direção oposta. E o capitão finge que não vê.


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