São Paulo, terça-feira, 04 de agosto de 2009

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JANIO DE FREITAS

O dito cabo Anselmo


As narrativas já feitas por ele mais o comprometem, pelo que omitem, do que atenuam o horror humano que suscita


O ATUAL REAPARECIMENTO periódico do cabo Anselmo vem com a novidade de que se habilita, mesmo, à concessão financeira que compete à Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, segundo critérios de difícil ou impossível compreensão. No caso desse que se diz apenas cabo Anselmo, a incompreensão começa antes que a comissão possa aplicar os seus modos de avaliação do pedido: como seria possível considerar, para concessão ou recusa, reparações a alguém cuja história verdadeira, exceto no que foi testemunhado, é um segredo pessoal, militar e possivelmente diplomático há 45 anos?
As milimétricas e tortuosas narrativas já feitas por Anselmo mais o comprometem, pelo que omitem, do que atenuam o horror humano que suscita, pelas traições e mortes que seu nome lembra como reação automática. A maior reparação que poderia receber Anselmo já a tem por quase meio século: "esse pessoal da esquerda", como ele diz, deixou-o em gozo da vida e da integridade física, sem vindita, jamais, nem sequer a um dos seus crimes.
A propósito, constata-se que a ferocidade do cabo também pôde sobreviver em paz, tão clara agora na maneira irada como inclui até o governo Lula "nesse pessoal da esquerda", para registro do repórter Lucas Ferraz na Folha.
Anselmo diz ter dificuldades financeiras, razão para duas observações. Tais dificuldades, supondo-se que existam, não eliminam a questão de como se manteve nos últimos 45 anos. E, ainda, o fato de que os serviços secretos e as correntes militares da ditadura, ou delas originárias, nunca abandonaram um dos seus que se mantivesse fiel, como Anselmo. Os anos desde o fim da ditadura estão repletos de nomes e histórias assim. E, por gratidão ou dever funcional, a Marinha e a ditadura deixaram provas do tratamento especial ao dito cabo Anselmo.
A história rocambolesca que Anselmo certa vez narrou de sua fuga, quando preso com outros marinheiros depois do golpe, vale por um atestado.
O compreensível ódio da oficialidade desacatada pelos marinheiros, logo na mais classista das forças militares, transmudou-se em represália feroz quando o golpe possibilitou a prisão da marujada rebelde. Masmorras e prisão nas piores condições em navios foram o destino comum dos apanhados. Não, porém, para o maior incitador da rebelião e das ameaças à oficialidade: Anselmo foi posto em um pequeno e pacato distrito policial na orla da floresta do Alto da Tijuca, sem vigilância especial, e disponível para seus visitantes. Em poucos dias, não precisou de mais do que sair pela porta para a liberdade. Os visitantes perderam a sua nos dias seguintes.
Também por aquelas alturas, um cartunista jovem e já famoso foi solicitado a ajudar "o caçado" Anselmo, arranjando-lhe um abrigo por alguns dias. O rapaz deu-lhe a chave de um apartamento. Em troca, recebeu os efeitos habituais da repressão, e mais tarde viveu anos de exílio na Suíça.
Anselmo passara da traição a seus companheiros marujos para a traição no mundo civil que começava a descobrir. Não parou mais, até onde sua atividade deixou testemunhos. Incluída a traição e morte da própria mulher.
Quem é esse Anselmo, que história verdadeira tem vivido há meio século e por que se decidiu a fazê-la são ainda segredos. Para os quais Anselmo pretende a reparação criada, entre outras, para as suas vítimas.


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