São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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REGRAS DO JOGO

Contra a maré da criminalidade

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO

Como diz o "sobrevivente" Primo Preto, na batida do rap, "60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial; a cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras; nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros; a cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo".
É a equação das favelas e dos morros das grandes cidades. Pais, avós, filhos, irmãos, parentes, vizinhos e "manos" de alguém, e o próprio alguém, suspeito ou culpado: já conheceram ou conhecerão a brutalidade do sistema repressivo brasileiro.
Uma gente que, a rigor, não tem em quem votar.
Não se vê mais candidato a deputado disposto a esboçar uma palavra de ordem contra a violência policial ou contra o estado das nossas penitenciárias. É como procurar agulha no palheiro: Fernando Gabeira no Rio, Marcos Rolim em Porto Alegre...
Os programas de "segurança" dos partidos são capazes de apontar como centro nevrálgico do problema da criminalidade a miséria, a desigualdade e o desemprego. Mas, no curso da campanha, a lógica da vítima ocupa o lugar da racionalidade política.
É a regra do jogo mercadológico. Candidato bom é candidato duro com o crime.
O discurso de José Serra no horário eleitoral já está em sintonia. Quando fala da violência urbana desaparece o rigor metodológico do seu pensamento econômico e administrativo. Lula, Ciro e Garotinho estarão sintonizados na hora "h". É questão de tempo.
"Vamos tratar bandidos como bandidos", ameaça Genoino como se todos os que recebessem esse "trato" fossem bandidos. "Se queimar colchão, preso dormirá no chão", promete Maluf como se o poder público fornecesse colchão para preso dormir. "Não vamos recuar um milímetro" retruca Alckmin sobre sua "guerra", temeroso de ser tido como "frouxo".
Quanto mais distante o criminoso jovem e ocasional estiver do sistema penitenciário, mais longe ele estará do mundo do crime. Mas ninguém se importa com a inutilidade monstruosa de prender pessoas que não precisariam estar presas e com o desperdício de dinheiro que isso representa.
Nos aeroportos e nos bancos há detetores de metal, aparelhos de raio-x. Nos presídios, não. Imaginem, em nome da segurança dos vôos e do combate ao tráfico, a regra de desnudar mulheres antes do embarque... Mas ninguém se incomoda com a revista ginecológica e humilhante que a autoridade pratica na mãe do preso.
A lei já trata com o rigor destinado ao crime organizado quem não faz parte do crime organizado. A polícia já atira para matar. São Paulo já tem mais de 100 mil presos amontoados, sem direito de defesa e de voto.
Mas os candidatos querem mais. Querem mais restrições. Querem mais confisco de garantias individuais. Querem mais polícia. Querem mais armas em punho. Querem mais enfrentamento. Querem penas mais altas. Querem mais presídios e presídios mais distantes. Querem maioridade penal para garotos de 16, 14 anos. Querem qualquer coisa que pareça rápido e fácil, ainda que ineficaz.
O impacto da criminalidade na disputa política é tão perverso que, a cada eleição, há menos espaço para quem rema contra a maré do endurecimento. A guerra é de extermínio mesmo, e de exclusão. E corre solta. Sem porta-voz do lado contrário.

E-mail
lfcarvalhofilho@uol.com.br

LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO, advogado criminal e articulista da Folha, escreve às quartas nesta coluna



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