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ESCÂNDALO DO "MENSALÃO"/ ESQUERDA NO DIVÃ
Deputado diz que é preciso acabar com "elogio da ignorância" e argumenta que PT ruiu por ter se rendido à lógica da luta armada
Gabeira vê em Lula "despreparo" de Severino
Sérgio Lima/Folha Imagem
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O deputado federal Fernando Gabeira (PV-RJ), sentado em frente ao prédio do Congresso Nacional |
JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA
O ocaso prematuro do governo
Lula mergulhou o deputado federal Fernando Gabeira, 64, numa
fase de revisão existencial. "Quando há um fracasso tão retumbante
e você se vê como parte desse fracasso, a sua vida entra em questão. Por que tantos anos de sacrifício e de luta?"
Expoente da resistência contra a
ditadura, Gabeira (PV-RJ) tem
uma explicação singular para a
crise. Acha que o PT ruiu porque
se rendeu à lógica da luta armada.
Transpôs para o governo a máxima guerrilheira segundo a qual os
"fins justificam os meios".
O deputado tornou-se personagem da semana ao interpelar, na
terça-feira, o presidente da Câmara. "Vossa excelência é um desastre para o Brasil", disse, dedo em
riste, a um Severino Cavalcanti
que, na véspera, defendera em entrevista à Folha punição branda
para os integrantes da bancada do
"mensalão".
Gabeira enxerga no presidente
Lula traços do "despreparo" que
vê em Severino. Insurge-se contra
a exaltação que ambos fazem de
suas origens humildes. "Faço a
minha autocrítica. Blindamos o
Lula com o argumento de que as
pessoas que achavam que ele dizia
coisas sem sentido eram preconceituosas. Temos que acabar com
o elogio da ignorância."
Gabeira integrou o grupo que
seqüestrou em 1969 o embaixador
americano Charles Elbrick, para
trocá-lo pela liberdade de um grupo de estudantes presos no ano
anterior, entre eles José Dirceu.
Hoje, declara-se favorável à cassação do mandato parlamentar de
Dirceu, ex-ministro.
Repetiria o seqüestro para livrar
Dirceu de uma nova e hipotética
prisão? "Jamais participaria de
um seqüestro novamente. Compreendi o erro contido nessa forma de luta. Além disso, o tipo de
acusação a que ele era submetido
naquela época é muito diferente
das acusações que enfrenta hoje."
Gabeira converteu-se num esquerdista sem utopias. "Nesses
momentos de crise existencial
sinto que precisamos trabalhar
com os pés na realidade", diz ele.
"Não haverá mais sonho. Quero
ajudar as pessoas que estão realizando tarefas que não foram
cumpridas por conta da expectativa de uma revolução que resolveria tudo. Essa revolução não
existe no horizonte." "No Brasil",
completa, "o Muro de Berlim está
caindo com atraso".
Leia abaixo a entrevista que Gabeira concedeu à Folha na tarde
da última quinta-feira.
Folha -Conhecido pela afabilidade no trato, o sr. interpelou Severino Cavalcanti com rispidez incomum. A crise roubou-lhe a calma?
Fernando Gabeira - Há limites
para a calma. Com a entrevista do
Severino, mostrou-se necessário
interpelá-lo de maneira mais ríspida, para que ele entendesse que
a crise não comporta contemporizações. Para o meio político, o
tom pareceu elevado. Mas não recebi da população nenhum comentário nesse sentido. O cidadão comum e o político profissional percebem a crise de modo diferente.
Folha - Iniciada com a divisão do
PT, a ascensão de Severino só foi
garantida pelos votos que ele recebeu da chamada oposição responsável. Por que a insensatez prevaleceu sobre o bom senso?
Gabeira - O PT não só rachou como optou por um candidato [Luiz
Eduardo Greenhalgh] com poucas chances de vitória. E a oposição quis impor nova humilhação
ao governo. Eu dizia que votar em
Severino era votar contra o Parlamento. Fui apontado como preconceituoso. Diziam que Severino era humilde como o Lula.
Folha - Há na sua críticas um ataque subliminar à "glamourização"
da falta de educação formal?
Gabeira - Esse aspecto é decisivo
no momento. Faço a minha autocrítica. Blindamos o Lula com o
argumento de que as pessoas que
achavam que ele dizia coisas sem
sentido eram preconceituosas.
Existe na sociedade brasileira, sobretudo na classe média, um sentimento de culpa em relação aos
pobres. Daí a grande adesão à tese
de que a classe operária teria um
papel messiânico. Apesar de ter
contribuído para a campanha do
Lula e de me sentir responsável
por ajudar a meter o Brasil nessa
encrenca, acho que temos que superar essa fase de culpa diante dos
pobres e dos incultos. Minha experiência pessoal é a de um homem que também não era rico. A
diferença é que certas pessoas têm
curiosidade e outras não têm. Se
você é pobre e tem curiosidade,
você estuda. Temos que acabar
com o elogio da ignorância.
Folha - Houve perversões também sob o governo do intelectual
FHC. Compraram-se votos pró-reeleição, saquearam-se repartições
como a Sudam etc. O diploma universitário também não impediu
que João Paulo Cunha, antecessor
de Severino, recebesse dinheiro sujo do "valerioduto". O que infelicita a política nacional é a falta de estudo ou a falta de decência?
Gabeira - Obviamente, só o fato
de a pessoa ser instruída não resolve o problema. É preciso ter
compromisso com o povo.
Folha - Em que medida a deficiência intelectual de Lula contribuiu
para insuflar a crise?
Gabeira - Lula ascendeu ao governo munido de idéias inadequadas à realidade. Constatada a
inadequação do programa, era
preciso curiosidade intelectual
para promover o ajuste. Lula precisava reexaminar a sua visão de
Estado. Criou muitos ministérios,
empregou políticos que haviam
perdido as eleições, estimulou a
ocupação do aparato estatal pelos
amigos. Confundiu Estado com
partido.
Folha - Quando o sr. se engajou à
campanha de Lula, não lhe ocorreu
analisar o projeto de país que se escondia atrás do PT?
Gabeira - Eu já tinha em relação
ao ideário tradicional da esquerda
uma visão crítica. Mas me deixei
levar por uma preocupação intensa com a questão ecológica do
programa de governo e não
acompanhei as outras coisas. A
meu favor, digo que não fui convidado para contribuir com outras questões.
Folha - Antes de se desligar do PT,
em 2003, o sr. esteve no Planalto,
para conversar com José Dirceu,
então chefe da Casa Civil. Tomou
um chá de cadeira de uma hora e
meia. Abespinhado, foi embora antes de ser recebido. Hoje, Dirceu
perambula de deputado em deputado, vendendo a tese de que é inocente. Se ele batesse agora à sua
porta o sr. o receberia?
Gabeira - Sim.
Folha - Com ou sem chá de cadeira?
Gabeira - Sem chá de cadeira. Já
recebi a defesa dele. No momento
em que eu interpelava o Severino
no plenário, na terça-feira, ele
passou por mim. Eu disse: "Recebi
a sua defesa, mas não posso falar
contigo agora".
Folha - Quando puder falar, o que
dirá a Dirceu?
Gabeira - A defesa dele se baseia
no fato de que, no instante em que
os problemas ocorreram, ele era
ministro. Não poderia, portanto,
ser acusado de atentar contra o
decoro parlamentar. Na minha
visão, se o parlamentar comete
crime grave deve perder o mandato, mesmo não estando no
exercício do mandato.
Folha - Onze em cada dez deputados apostam que Dirceu será cassado. O sr. compartilha dessa unanimidade?
Gabeira - Sim, compartilho dessa expectativa.
Folha - Vai votar a favor da perda
do mandato do ex-ministro?
Gabeira - Muito provavelmente.
A menos que aconteça algo que
altere a minha visão.
Folha - Se Dirceu fosse preso hoje
o sr. seqüestraria um embaixador
americano para libertá-lo?
Gabeira - Não. Jamais participaria de um seqüestro novamente.
Compreendi o erro contido nessa
forma de luta. Além disso, o tipo
de acusação a que ele era submetido naquela época é muito diferente das acusações que ele enfrenta
hoje.
Folha - Sua rejeição à luta armada decorre do amadurecimento
que vem com a idade?
Gabeira - Fiz uma ampla reflexão. Vi que era necessário ampliar
os meus horizontes. A idéia da luta armada pressupõe a construção de um exército popular.
Constituído o exército libertador,
você fica sem saber depois quem
vai te libertar do exército.
Folha - À luz do que o PT fez no
governo, o sr. não é assaltado pela
sensação de que a opção pelas armas foi perda de tempo?
Gabeira - As duas coisas têm
uma conexão. A opção pelas armas implicava a admissão do
conceito de que os fins justificavam os meios. Recorria-se a
meios como a morte de soldados,
ataques a bancos, sacrifício de
companheiros. Quando se chega
ao governo, todos os meios passam a ser justificados em nome de
um fim maior, que passa pela
perspectiva de se manter no poder para eliminar a exploração do
homem pelo homem. A esquerda
brasileira chegou à decadência
mais lentamente, mas segue o
mesmo padrão da esquerda mundial. A diferença é que, no Brasil, o
Muro de Berlim está caindo com
atraso.
Folha - Seu raciocínio combina
com José Dirceu, mas não com Lula,
que, longe de ser um socialista
clássico, sempre foi um sindicalista
pragmático.
Gabeira - Ele é tão pragmático
que percebeu que a esquerda tinha uma fantasia a respeito do papel do operário. E resolveu encarná-lo. Ele ainda não se deu conta
de que não foi a classe operária
que chegou ao poder. No script da
esquerda, ele representa a classe
operária. Mas o script é dos intelectuais, que fantasiam muito a
respeito do operariado. Uma filósofa como a Marilena Chaui,
quando ouve o Lula, diz: "O Lula,
quando fala, tudo se esclarece, tudo se ilumina".
Folha - A intelectualidade de esquerda vive uma fase de perplexidade, não acha?
Gabeira - Existem diferentes níveis de desembarque na realidade. Há pessoas que vão mais devagar, outras levam um tombo.
Olho com certa tolerância para
esse processo.
Folha - Em meio a um presente
tão desalentador, não lhe bate
uma sensação de vazio?
Gabeira - Quando há um fracasso tão retumbante e você se vê como parte desse fracasso, a sua vida entra em questão. Por que tantos anos de sacrifício e de luta?
Valeu a pena? A história é mais
brutal do que os nossos sonhos.
Nesses momentos de crise existencial sinto que precisamos trabalhar com os pés na realidade.
Folha - Valeu a pena?
Gabeira - Pessoalmente, pude
evoluir em relação ao que eu era.
Mas em relação ao Brasil temos
uma dívida enorme. Considerando os quase três anos de governo
Lula, pelo qual fui co-responsável,
é desalentador notar que não conseguimos equacionar nem o problema do saneamento básico.
Folha - O sr. já se referiu ao governo como um cadáver insepulto. Se
está morto, não seria melhor remover o corpo do Planalto antes que o
cheiro se torne insuportável.
Gabeira - Sua pergunta embute a
resposta. Só se pode remover o
corpo depois que o cheiro se tornar insuportável. Isso ainda não
ocorreu.
Folha - Olhando para a frente,
tem-se a impressão de que até a luz
no fim do túnel foi roubada. O que
o sr. enxerga no futuro?
Gabeira - Vários mitos caíram. A
ausência de um mito messiânico
da classe operária permite concluir que não temos salvadores, o
que é um avanço. A decadência
moral em que parte da esquerda
se meteu mostra que ela não é o
bem absoluto. Fica demonstrado
também que a direita não é o mal
absoluto. Abre-se espaço para novas conformações políticas.
Folha - Que parcerias o sr. vislumbra para depois do dilúvio?
Gabeira - Estamos em pleno
naufrágio. Há corpos boiando,
pessoas se afogando, gente segurando na amurada e sobreviventes preparando o salto do navio. É
preciso ver o que vai sobrar. Mas
creio que há a possibilidade de
uma coligação de centro-esquerda, capaz de negociar com a direita sem comprá-la.
Folha - O sr. pode dar nome aos
bois?
Gabeira - O PSDB e a esquerda
sobrevivente do PT podem se associar no futuro. A partir dessa associação, podem reconhecer que
há um processo de modernização, embora lento, no PFL.
Folha - O sr. diria que José Dirceu
está entre os corpos que estão
boiando?
Gabeira - Considerando o momento, diria que sim.
Folha - E quanto ao presidente
Lula?
Gabeira - Ele estava agarrado à
amurada. No momento, agarra-se no braço de Juscelino Kubitschek. Quando Juscelino desencarnar, não sei o que pode acontecer.
Folha - O sr. ainda alimenta a esperança de reconstruir o seu sonho
pessoal?
Gabeira - Não haverá mais sonho. Preciso botar o pé no chão.
Quero ajudar as pessoas que estão
realizando tarefas que não foram
cumpridas por conta da expectativa de uma revolução que resolveria tudo. Essa revolução não
existe no horizonte. Uma pessoa
como eu deveria ser proibida de
ter grandes sonhos. Percebo que,
não só não realizamos tarefas básicas, como cometemos uma série
de atrocidades em nome dos sonhos. Nós, da esquerda, formulamos a idéia de um novo mundo,
de um novo homem. Hoje, penso
que devemos aceitar as pessoas
tais como elas são, tentando melhorá-las, mas sem essa perspectiva do novo homem. É preciso trabalhar com a realidade. Sem medos nem esperanças.
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