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ensaio
Fratura exposta
O que há com
a percepção
que temos
da cidade,
que parece
nos fazer ver invertida a realidade?
SERGIO KON
ESPECIAL PARA A FOLHA
A CIDADE SE VÊ
A cidade reflete a sociedade
que somos. A população mais
provida reclama do trânsito, do
tempo que perde em seus carros, embora gaste menos de
meia hora em seu percurso, enquanto a das distantes periferias reclama mais dos buracos
das ruas que da mais de uma
hora de viagem até o trabalho.
Os que moram nas regiões
mais valorizadas queixam-se
da falta de segurança em seus
bairros, que, contudo, apresentam baixos índices de violência.
Em contrapartida, nos bairros
mais violentos, os moradores
dizem-se seguros, e sentem-se
prejudicados é pela precária
iluminação das ruas. O que há
com a percepção que temos da
cidade, que parece nos fazer ver
invertida a realidade?
A CIDADE NÃO SE VÊ
Numa sociedade tão desigual, aquele que tem muito
sente-se muito ameaçado por
aquele que pouco ou nada tem.
Ele mesmo, nessa outra situação, não viveria sem uma
ponta de revolta, sem olhar
aquele sujeito bem de vida com
desconfiança, porque, afinal, se
somos iguais, por que uma vida
é tão mais difícil que a outra?
As pessoas com recursos refugiaram-se em seus automóveis de vidros escuros, abandonaram as calçadas e ganharam
o asfalto, abriram mão do contato com o mundo lá fora e passaram a circular de garagem a
garagem, e a freqüentar lugares
superprotegidos, ambientes
que controlam e filtram os que
podem e não podem entrar.
Protegem-se da imensa população que corre das periferias para o centro em ônibus
superlotados. Pessoas que talvez tenham andado um bom
tempo a pé por ruas esburacadas, talvez passando perto do
corpo de um jovem assassinado e que talvez pensem em algum de seus filhos, menos paciente e conformado com a falta de dinheiro, capaz de qualquer coisa para sair dessa vida
pequena e pobre, mas honesta.
O morador da periferia sabe
o lugar que a cidade lhe reservou, mas teimosamente segue
tentando um salário melhor,
um emprego que lhe dê uma
carreira, condições de sair dessa dureza, comprar uma HDTV
de muitas polegadas com home
theater e um carro como o do
bacana que passa ao lado, bem
sentado em seu aquário, e que
está impaciente com a meia
hora de um trajeto de menos de
dez minutos, um tempo que lhe
parece muito maior do que
marcam os números do relógio
digital que reluz acima do marcador do ar-condicionado.
Os dois se entreolham. Um,
já suando e cansado, até gosta
da sua vida, dos amigos, da casa, mas sente a vida escoando,
os cursos que precisaria fazer
são muito caros e longe de casa,
a esperança ficando por um fio.
O outro, no carro fresco, incomoda-se com aquele ônibus
lotado, aquela gente toda formigando apressada nas calçadas, em trânsito. Ele acha injusto, mas, por via das dúvidas,
se certifica de estarem fechados os vidros, pois no farol alguém vende balas ou faz malabarismo e nunca se sabe. Esse
povo não tem nada a perder.
A CIDADE EXPANDIDA
São Paulo desenvolveu-se e
empurrou milhões de pessoas
para longe do centro rico e
próspero. Mas continua exigindo que essa gente volte diariamente para fazê-la funcionar e
a troco de muito pouco. Embora concentre a maior parte da
população, os bairros periféricos sofrem com a falta de infra-estrutura urbana e a ausência
dos serviços públicos, desde o
asfalto precário até a coleta de
lixo irregular, desde o escasso
fornecimento de água e iluminação até a deficiente rede de
esgoto ou a ineficiente distribuição das linhas de transportes públicos e a ausência de
postos de saúde e hospitais, de
postos policiais, cultura e lazer.
Este território enorme se fez
à margem da cidade legal. Produto das terras invadidas e griladas sob a vista complacente
de um poder que, não sabendo
como agir, simplesmente não
agiu. Afinal, as pessoas tinham
de morar em algum lugar por aí,
meio longe, perto ninguém tolerava, mas nem tão distante,
pois precisava-se deles para
viabilizar a cidadela. São Paulo
não podia parar...
A CIDADE FRATURADA
E como não parou, também
não teve tempo de se pensar,
pois a demanda crescia, era
muita gente, muito carro, o metrô sempre é muito caro, então
alargamos uma avenida aqui,
fazemos um corredor para ônibus ali, um complexo viário sobre o parque, porque em parque quase ninguém vai mesmo,
e retificamos esse rio que já está um esgoto mesmo.
Quando a euforia passou, e a
ficha caiu, estávamos numa cidade sem paisagem, as referências -naturais e artificiais-
destruídas, abandonadas ou
comprometidas, o espaço urbano fraturado, o centro, imponente e belo, abandonado pelos
senhores do dinheiro, os prédios crescidos sem nenhum
cuidado formal, bairros fabris
abandonados, seus galpões tendo se tornado grandes esqueletos, as favelas e os bairros ilegais haviam se multiplicado e
disseminado em grandes extensões, sem nenhuma regra.
No ocaso da cidadania, o homem paulistano dispersou-se,
voltando-se ao seu projeto de
vida pessoal, fechou os olhos e
mergulhou em si. Desistiu do
maior patrimônio da vida urbana, o espaço público aberto e
acessível a todos. Ergueu muros, grades, barreiras elétricas.
Fez de quem está fora, suspeito; fez dos diferentes, inimigos.
UMA OUTRA CIDADE
Mas o tempo dá voltas, e a cidade que todos os dias encena o
mesmo drama, o nosso drama,
mistura no seu palco gentes de
todas as procedências e experiências, cria encontros improváveis, e exibe a teimosia daqueles uns que acreditam que a
vida, sim, pode ser melhor, sim,
mais gregária, sim, mais justa,
sim -e vão lutar por isso, sim.
Se nos é importante uma metrópole que seja de fato democrática, inclusiva, é preciso tomá-la nas mãos e participar das
decisões que nos concernem,
pois é a dimensão de sua ação
política que forma o cidadão.
E então será preciso exigir
que o espaço público seja mesmo público, acessível a todos,
aprazível, confortável, confiável, necessário. Exigir que as
autoridades públicas atenham-se ao que é do interesse de todos e vigiar, reivindicar, sugerir, pressionar duramente os
representantes de seu bairro,
de sua região, da vida comum.
E se a cidade é nossa, temos
de criar uma cultura de investimentos de qualquer natureza,
privados ou públicos, que tenha
sempre uma dimensão pública
e que sejam planejados para
tornar melhor o ambiente e a
vida de seus habitantes.
Aceitar as leis como mediadoras dos interesses divergentes, obedecê-las e discuti-las
sempre, para que sejam cada
vez melhores e mais justas.
Olhar o outro, nas suas diferenças, como um igual, um parceiro de algo a se construir junto.
Nas sociedades democráticas, o
voto é apenas o início da ação
do cidadão. E a cidade apenas
reflete a sociedade que somos.
SERGIO KON , 48, arquiteto e artista gráfico, é
autor de "Imagem: da Caverna ao Monitor, a
Aventura do Olhar" (Melhoramentos, 2006) e
co-autor de "A (Des)Construção do Caos: Propostas Urbanas para São Paulo" (Perspectiva,
2008).
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