São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2008

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ensaio

Fratura exposta

O que há com a percepção que temos da cidade, que parece nos fazer ver invertida a realidade?

SERGIO KON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A CIDADE SE VÊ
A cidade reflete a sociedade que somos. A população mais provida reclama do trânsito, do tempo que perde em seus carros, embora gaste menos de meia hora em seu percurso, enquanto a das distantes periferias reclama mais dos buracos das ruas que da mais de uma hora de viagem até o trabalho.
Os que moram nas regiões mais valorizadas queixam-se da falta de segurança em seus bairros, que, contudo, apresentam baixos índices de violência. Em contrapartida, nos bairros mais violentos, os moradores dizem-se seguros, e sentem-se prejudicados é pela precária iluminação das ruas. O que há com a percepção que temos da cidade, que parece nos fazer ver invertida a realidade?

A CIDADE NÃO SE VÊ
Numa sociedade tão desigual, aquele que tem muito sente-se muito ameaçado por aquele que pouco ou nada tem.
Ele mesmo, nessa outra situação, não viveria sem uma ponta de revolta, sem olhar aquele sujeito bem de vida com desconfiança, porque, afinal, se somos iguais, por que uma vida é tão mais difícil que a outra?
As pessoas com recursos refugiaram-se em seus automóveis de vidros escuros, abandonaram as calçadas e ganharam o asfalto, abriram mão do contato com o mundo lá fora e passaram a circular de garagem a garagem, e a freqüentar lugares superprotegidos, ambientes que controlam e filtram os que podem e não podem entrar.
Protegem-se da imensa população que corre das periferias para o centro em ônibus superlotados. Pessoas que talvez tenham andado um bom tempo a pé por ruas esburacadas, talvez passando perto do corpo de um jovem assassinado e que talvez pensem em algum de seus filhos, menos paciente e conformado com a falta de dinheiro, capaz de qualquer coisa para sair dessa vida pequena e pobre, mas honesta.
O morador da periferia sabe o lugar que a cidade lhe reservou, mas teimosamente segue tentando um salário melhor, um emprego que lhe dê uma carreira, condições de sair dessa dureza, comprar uma HDTV de muitas polegadas com home theater e um carro como o do bacana que passa ao lado, bem sentado em seu aquário, e que está impaciente com a meia hora de um trajeto de menos de dez minutos, um tempo que lhe parece muito maior do que marcam os números do relógio digital que reluz acima do marcador do ar-condicionado.
Os dois se entreolham. Um, já suando e cansado, até gosta da sua vida, dos amigos, da casa, mas sente a vida escoando, os cursos que precisaria fazer são muito caros e longe de casa, a esperança ficando por um fio.
O outro, no carro fresco, incomoda-se com aquele ônibus lotado, aquela gente toda formigando apressada nas calçadas, em trânsito. Ele acha injusto, mas, por via das dúvidas, se certifica de estarem fechados os vidros, pois no farol alguém vende balas ou faz malabarismo e nunca se sabe. Esse povo não tem nada a perder.

A CIDADE EXPANDIDA
São Paulo desenvolveu-se e empurrou milhões de pessoas para longe do centro rico e próspero. Mas continua exigindo que essa gente volte diariamente para fazê-la funcionar e a troco de muito pouco. Embora concentre a maior parte da população, os bairros periféricos sofrem com a falta de infra-estrutura urbana e a ausência dos serviços públicos, desde o asfalto precário até a coleta de lixo irregular, desde o escasso fornecimento de água e iluminação até a deficiente rede de esgoto ou a ineficiente distribuição das linhas de transportes públicos e a ausência de postos de saúde e hospitais, de postos policiais, cultura e lazer.
Este território enorme se fez à margem da cidade legal. Produto das terras invadidas e griladas sob a vista complacente de um poder que, não sabendo como agir, simplesmente não agiu. Afinal, as pessoas tinham de morar em algum lugar por aí, meio longe, perto ninguém tolerava, mas nem tão distante, pois precisava-se deles para viabilizar a cidadela. São Paulo não podia parar...

A CIDADE FRATURADA
E como não parou, também não teve tempo de se pensar, pois a demanda crescia, era muita gente, muito carro, o metrô sempre é muito caro, então alargamos uma avenida aqui, fazemos um corredor para ônibus ali, um complexo viário sobre o parque, porque em parque quase ninguém vai mesmo, e retificamos esse rio que já está um esgoto mesmo.
Quando a euforia passou, e a ficha caiu, estávamos numa cidade sem paisagem, as referências -naturais e artificiais- destruídas, abandonadas ou comprometidas, o espaço urbano fraturado, o centro, imponente e belo, abandonado pelos senhores do dinheiro, os prédios crescidos sem nenhum cuidado formal, bairros fabris abandonados, seus galpões tendo se tornado grandes esqueletos, as favelas e os bairros ilegais haviam se multiplicado e disseminado em grandes extensões, sem nenhuma regra.
No ocaso da cidadania, o homem paulistano dispersou-se, voltando-se ao seu projeto de vida pessoal, fechou os olhos e mergulhou em si. Desistiu do maior patrimônio da vida urbana, o espaço público aberto e acessível a todos. Ergueu muros, grades, barreiras elétricas. Fez de quem está fora, suspeito; fez dos diferentes, inimigos.

UMA OUTRA CIDADE
Mas o tempo dá voltas, e a cidade que todos os dias encena o mesmo drama, o nosso drama, mistura no seu palco gentes de todas as procedências e experiências, cria encontros improváveis, e exibe a teimosia daqueles uns que acreditam que a vida, sim, pode ser melhor, sim, mais gregária, sim, mais justa, sim -e vão lutar por isso, sim.
Se nos é importante uma metrópole que seja de fato democrática, inclusiva, é preciso tomá-la nas mãos e participar das decisões que nos concernem, pois é a dimensão de sua ação política que forma o cidadão.
E então será preciso exigir que o espaço público seja mesmo público, acessível a todos, aprazível, confortável, confiável, necessário. Exigir que as autoridades públicas atenham-se ao que é do interesse de todos e vigiar, reivindicar, sugerir, pressionar duramente os representantes de seu bairro, de sua região, da vida comum.
E se a cidade é nossa, temos de criar uma cultura de investimentos de qualquer natureza, privados ou públicos, que tenha sempre uma dimensão pública e que sejam planejados para tornar melhor o ambiente e a vida de seus habitantes.
Aceitar as leis como mediadoras dos interesses divergentes, obedecê-las e discuti-las sempre, para que sejam cada vez melhores e mais justas. Olhar o outro, nas suas diferenças, como um igual, um parceiro de algo a se construir junto. Nas sociedades democráticas, o voto é apenas o início da ação do cidadão. E a cidade apenas reflete a sociedade que somos.


SERGIO KON , 48, arquiteto e artista gráfico, é autor de "Imagem: da Caverna ao Monitor, a Aventura do Olhar" (Melhoramentos, 2006) e co-autor de "A (Des)Construção do Caos: Propostas Urbanas para São Paulo" (Perspectiva, 2008).


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