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CLAUDIO LOTTENBERG, MÉDICO
"Na saúde não se cortam gastos, mas desperdícios"
Para o presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, Brasil prioriza a
infra-estrutura em saúde e se esquece da necessidade de uma gestão adequada
O MÉDICO Claudio Lottenberg acha que o Brasil tem falado demais em desenvolvimentismo e infra-estrutura, esquecendo-se de que, sem saúde, todo o resto não funciona. "Uma pessoa desestruturada nesse parâmetro mínimo não consegue se desenvolver." Com o foco nesse cidadão-paciente, Lottenberg, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein, escreveu o livro "A Saúde Brasileira Pode Dar Certo" (Ed. Atheneu, 125 págs., R$ 40), a ser lançado amanhã, a partir das 19h, na livraria Fnac da avenida Paulista. O objetivo é mostrar que um atendimento médico de qualidade, sustentável e acessível à população pode ser conseguido, desde que se usem ferramentas adequadas de gestão e que se aplique a máxima que orienta a obra: "Na saúde não se cortam gastos, mas desperdícios".
(LAURA CAPRIGLIONE)
FOLHA - O que a experiência como
gestor de um grande hospital privado pode ensinar à saúde pública?
CLAUDIO LOTTENBERG - Que a saúde tem de ser administrada
com ferramentas de gestão, sob
pena de se tornar absolutamente insustentável, tanto no
setor público, quanto no privado. Só para comparar, a economia da área da saúde apresenta
índices inflacionários cinco vezes superiores aos da economia
americana. Cada vez que a inflação americana sobe 2%, sobe
10% na economia médica.
FOLHA - Por que isso acontece?
LOTTENBERG - Veja, por exemplo, o custo que a tecnologia
agrega à prática assistencial. A
gente é agredido maciçamente
pela indústria, que quer vender
a tecnologia, sem mensurar se
aquela tecnologia agrega ou
não agrega valor. É preciso determinar com precisão se aquela nova terapêutica é superior
àquilo tradicionalmente usado,
ou se, apesar do custo extra,
trata-se de algo que não vai ajudar em nada. A idéia é se municiar de mecânicas de qualidade,
de modo que você não corte
custos, mas corte desperdícios.
Esse é o conceito básico.
FOLHA - Dê um exemplo, por favor.
LOTTENBERG - Salta aos olhos o
fato de algumas cadeias de laboratórios particulares apresentarem 80% dos seus exames
absolutamente dentro da normalidade. Tem exame que você
pede e, graças a Deus, dá normal. Mas, se em 80% dos casos
está vindo normal, isso significa que nós não estamos remunerando a esfera privada pela
competência, mas pela incompetência, pelo desperdício.
FOLHA - Eu, quando vou ao médico, sinto-me segura vendo-o pedir
vários exames de laboratório...
LOTTENBERG - Você e quase todo
mundo, que se sentirá injustiçado se não fizer uso de todas as
tecnologias disponíveis, sejam
necessárias ou não. O nome já
diz: são exames complementares. Têm de estar associados à
inteligência médica. Os leigos
têm de ser informados de que
excesso de exame não é equivalente a bom atendimento. Por
outro lado, também há exemplos em sentido contrário, em
que tecnologias novas conseguem economia no processo,
além de agregar valor.
FOLHA - Como?
LOTTENBERG - Muitos convênios
de saúde se negavam a cobrir as
cirurgias bariátricas, ou cobriam apenas em casos de obesidade mórbida, por julgarem o
procedimento caro. Aí, começaram a perceber que, ao liberar a cirurgia bariátrica quando
clinicamente indicada, os pacientes começavam a melhorar
de hipertensão, de diabetes
-melhorava a qualidade de vida do paciente. Ou seja, a nova
tecnologia tinha valor real. Ela
até custava muito no começo,
mas, no final das contas, você
gastava menos com as complicações decorrentes da obesidade. A mesma lógica aplica-se às
cirurgias de miopias.
FOLHA - Nesse caso, não se trata de
um luxo?
LOTTENBERG - Fala-se que a cirurgia de miopia é cara, é supérflua. Mas, se eu imaginar
que o indivíduo precisa enxergar, que ele será obrigado a fazer exames oftalmológicos periódicos, que trocará de óculos
pelos próximos 25 anos, a cirurgia acaba valendo a pena -e
muito. Há procedimentos que
podem até parecer mais caros
em um determinado momento,
mas no médio e longo prazos
saem mais em conta para o cidadão e para a sociedade. E, se é
a sociedade que custeia tudo,
temos de começar a municiá-la
de ferramentas técnicas de aferição sobre procedimentos e
tecnologias novas. O importante é saber que a saúde deve ser
pensada sempre em termos de
processo, de longo prazo.
FOLHA - Na vida de um cidadão pobre, os problemas são a falta de hospitais e de medicamentos...
LOTTENBERG - Não são. São de
gestão também. A gente assistiu há pouco, no debate eleitoral, a uma competição entre candidatos para ver quem
construiria mais hospitais,
quem distribuiria mais medicamentos. É claro que, em regiões
longínquas do país, ainda é necessário inaugurar hospital.
Mas veja o caso de São Paulo. A
cidade tem mais de 30 hospitais, 15 na esfera municipal, subordinados à Secretaria Municipal da Saúde. Nesses hospitais, o tempo médio de permanência do paciente é superior a
11 dias. Em hospitais privados,
entre os quais o nosso, o tempo
médio de permanência é de 4,4
dias. O índice de giro dos hospitais privados é de 7 a 8, o que
significa que, num mesmo leito, passam de 7 a 8 pacientes
por mês. Nos hospitais públicos
é um terço disso. Diante desses
dados, vem a pergunta: o que é
que está faltando? É leito? Ou é
performance? Na minha visão,
é performance.
FOLHA - E como resolver isso?
LOTTENBERG - A gente tem hoje
um modelo de assistência à
saúde que é "hospitalocêntrico". A gente acha que o hospital
é a porta de entrada -o que é
um erro, porque se trata de
uma estrutura muito cara. No
mundo todo, a medicina está se
ambulatorizando. Não são mais
necessários tantos leitos. Há
dez anos, o tempo médio de
permanência em um hospital
americano era de 5,6 dias. Hoje,
mais de 60% dos pacientes nos
hospitais americanos ficam
menos de cinco horas sendo
atendidos. O que se necessita
no fundo é melhorar a performance: hospitais mais enxutos,
processos ambulatoriais acontecendo onde têm de acontecer
-nos ambulatórios- e uma
maior integração com outras
formas de assistência, de modo
a que o hospital deixe de ser
uma casa de longa permanência. Os hospitais não são locais
para isso.
FOLHA - Muitos pacientes pobres
não dispõem de locais com um mínimo de condições para atendê-los
enquanto eles se recuperam...
LOTTENBERG - Tem de haver
uma política de assistência social que abrigue esse paciente
com dignidade, com serviço de
enfermagem, se necessário for.
Mas não precisa e nem deve ser
um local com infra-estrutura
caríssima como é a de um hospital. Isso é desperdício.
FOLHA - O sr. defende que a remuneração do médico seja feita segundo os resultados obtidos. Não é arriscada essa lógica, quando aplicada
a doentes terminais, por exemplo?
LOTTENBERG - Eu acho que se o
sistema for medido apenas por
indicadores econômicos, a gente corre, sim, esse risco. Mas, se
a medição de performance do
sistema tiver indicadores de
qualidade, não. A minha remuneração como médico será
maior se eu gastar menos com o
paciente? Isso deve ser verdade
apenas em parte. A outra parte
é: quanto tempo estou demorando para reintegrar esse indivíduo a sua vida normal? Qual é
a taxa de mortalidade? A taxa
de infecção? Qual o índice de
formação de escaras [destruição localizada da pele que acomete os doentes acamados]?
Quando se usam elementos como esses para avaliar a performance do profissional, pode-se
pagar por performance com
absoluta segurança para o
paciente.
FOLHA - O país assiste a um envelhecimento acentuado da população. Como deve ser a preparação para a incidência muito maior de doenças crônicas, típicas da idade?
LOTTENBERG - Hoje, se você observar o que está acontecendo
nos hospitais, verá que 69% das
internações já se referem a pacientes que apresentam doenças crônicas. Nada menos do
que 80% das diárias hospitalares são usadas com pacientes
crônicos. Com o aumento da
expectativa de vida da população, esses índices devem aumentar ainda mais.
FOLHA - Como o sistema de saúde
deve enfrentar o problema?
LOTTENBERG - A primeira coisa é
focar no que é mais prevalente.
Hoje, em São Paulo, as pessoas
sofrem principalmente de
doenças neurocardiovasculares, com destaque para os acidentes vasculares cerebrais.
Sabendo disso, pode-se levantar os recursos disponíveis e as
necessidades de cada região.
Pode-se priorizar a aquisição e
o uso de equipamentos necessários ao tratamento desses
problemas. Esse é o valor da
epidemiologia, que é o que
poderíamos de chamar "marketing de produto" da área
médica.
FOLHA - O que é isso?
LOTTENBERG - É a ferramenta
que me permite prever o serviço médico que terá demanda.
Se você sabe que uma região
tem alta incidência de hipertensos, você pode fazer campanhas preventivas, adquirir
equipamentos para atender
mais prontamente os necessitados, tentar reduzir as seqüelas. Evidentemente, isso não
significa deixar sem atendimento os pacientes com doenças mais raras, mas é preciso focalizar os maiores esforços nas
enfermidades que afetam parcelas maiores da população.
FOLHA - O senhor permaneceu
apenas seis meses à frente da Secretaria Municipal da Saúde de São
Paulo. Por quê?
LOTTENBERG - O prefeito [na
ocasião, José Serra] me incumbiu naquela época de organizar
a secretaria. Fiz mais do que isso, fiz um diagnóstico, com o
"Atlas da Saúde", uma radiografia da saúde paulistana. Reduzi o quadro de 33 subsecretários da Saúde, que era o que São
Paulo tinha, para apenas cinco.
Quem teve peito de fazer um
diagnóstico dos hospitais e trazer esses indicadores à luz do
dia? Ninguém conhecia isso.
Hoje, pode-se saber como cada
um deles gasta o dinheiro que
recebe. Quem teve peito para
padronizar os medicamentos
oferecidos à população? Todo
mundo queria aqui uma lista de
300 medicamentos. Eu fui lá e
reduzi para 200 e poucos. Fiz
isso a partir do parecer de um
comitê científico que estudou
as informações epidemiológicas. E por quê? Porque não podia admitir que, por falta de
uso, se perdessem medicamentos. Com todas essas ações, você mexe em muitos interesses.
Chegou um determinado momento em que eu achei que o
desgaste pessoal tinha ficado
grande demais.
FOLHA - E voltou para o Einstein...
LOTTENBERG - O Einstein tem 25
áreas de São Paulo, onde atende pacientes com gratuidade.
Tem sete unidades de ultrassonografia e cinco consultórios
de oftalmologia voltados para a
população carente. Cuida de
unidades públicas de atendimento médico ambulatorial,
tem parceria com o Programa
de Saúde da Família. Estou fazendo mais do que se estivesse
na secretaria. Eu falei até para o
prefeito [Serra]: "Para eu fazer
na saúde tudo o que tem de ser
feito, lamentavelmente, acho
que preciso sentar no seu lugar,
não dá para trabalhar com
você". Eu não pretendo me
candidatar a nada, mas acho
que conhecimento tem de ser
usado para o bem de quem necessita dele.
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