São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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RELIGIÃO
Católicos mortos por índios em 1645 viram candidatos a santos
Papa beatifica hoje os 30 primeiros mártires do país

Eduardo Knapp/Folha imagem
Moradores de Uruaçu rezam sob a cruz no local do massacre de católicos por índios e holandeses


EDMILSON ZANETTI
da Agência Folha,

em Canguaretama (RN)

O papa João Paulo 2º beatifica hoje, com uma cerimônia no Vaticano, os 30 primeiros mártires da Igreja Católica no Brasil.
Desconhecidos da maioria dos brasileiros, eles passam a ser candidatos a santos, ao lado dos outros três beatos que viveram em nosso país: José de Anchieta, madre Paulina e frei Galvão.
Os 30 mártires foram mortos por índios no século 17, em dois massacres a mando dos holandeses no Rio Grande do Norte, nos lugarejos de Cunhaú e Uruaçu. Beatificados, a partir de hoje podem ser cultuados, com autorização do Vaticano.
Um dos padrinhos da causa é o arcebispo do Rio de Janeiro, cardeal dom Eugênio Sales, natural do Rio Grande do Norte, expoente da ala conservadora da Igreja. Ele celebra a primeira missa dos mártires amanhã, na igreja de São Gregório 7º, em Roma.
Para beatificação de mártires, não é exigida comprovação de milagres. É indispensável a comprovação de três pontos: morte violenta, imposta por ódio à fé e livremente aceita pela vítima.
O monsenhor Francisco de Assis Pereira, 64, postulador da causa dos mártires de Cunhaú e Uruaçu, convenceu uma rigorosa comissão de historiadores e teólogos do Vaticano de que as três características estiveram presentes nos massacres.
Foram mortas cerca de 150 pessoas nos dois episódios. O Vaticano só beatificou 30, cujos nomes ou referências foram encontrados pelos historiadores. São 27 brasileiros, um português, um francês e um espanhol.
Nem todos são totalmente conhecidos. Alguns são identificados apenas como "jovens companheiros de João Martins", um dos mártires cujo nome sobreviveu ao tempo. Há também "filhas" ou "a mulher" de alguns dos massacrados.
Dois dos mortos -Manuel Alures Ilha e Antonio Fernandes- tiveram seus nomes recusados para a beatificação porque, segundo relatos da época, reagiram e mataram índios.
A pesquisa minuciosa durou mais de dez anos e custou aos cofres da Igreja cerca de US$ 30 mil. Foram 12 viagens à Europa, consultas a mais de 50 autores.
Para escrever o "Positio" -dissertação em italiano que defende a tese da beatificação-, monsenhor Assis vasculhou arquivos como o de Haia, na Holanda, da Torre do Tombo, em Lisboa, e o Arquivo do Vaticano.
A base do dossiê são três autores portugueses, um deles contemporâneo dos fatos. Frei Manuel Calado escreveu "O Valeroso Lucideno e Triunfo da Liberdade" em 1645, ano dos massacres, e 1646, e afirma ter colhido relatos de sobreviventes e testemunhas oculares dos massacres.



Fontes holandesas
Para evitar acusação de parcialidade, já que os historiadores portugueses eram politicamente engajados na resistência ao domínio holandês, monsenhor Assis também buscou comprovar os fatos com fontes holandeses.
Conseguiu um documento inédito: o "Diário de Viagem à Paraíba e ao Rio Grande", de Adriaen Van Bullestrate -um dos três governadores do Nordeste na época-, escrito de 4 a 29 de outubro de 1645, logo depois do segundo massacre.
Os massacres são fatos históricos estabelecidos, mas há divergências quanto às suas circunstâncias. Os portugueses dão às narrativas um clima de intolerância religiosa, promovida pelos protestantes calvinistas. Os holandeses registram os acontecimentos, por sua vez, como episódios meramente militares.
O primeiro massacre aconteceu em 16 de julho de 1645, durante o período de domínio holandês no Nordeste. Cerca de 70 pessoas participavam da missa na capela Nossa Senhora das Candeias, no engenho Cunhaú, principal pilar econômico da então capitania de Rio Grande.
Um alemão a serviço dos holandeses, Jacó Rabe, chegou ao local e ordenou que as portas fossem fechadas. A um sinal de Rabe, soldados holandeses e índios tapuias e potiguares teriam então iniciado a chacina no momento em que o padre André de Soveral erguia a hóstia, segundo relatos da época. Os corpos foram comidos pelos índios.
Parte dos indígenas tinha sido cooptada pelos holandeses, como uma forma de se livrar da escravidão imposta pelos portugueses.
Três índios chegaram a ser indicados governadores de capitanias durante o domínio holandês. Alguns foram enviados à Holanda e voltaram calvinistas.
O engenho Cunhaú foi incendiado meses depois. As ruínas de uma capela -que a Igreja Católica diz ter sido palco do massacre e os historiadores dizem ter sido construída no século seguinte- foram restauradas em 1986 e viraram patrimônio histórico.
A dois quilômetros do centro de Canguaretama, um lugarejo pobre a 60 km de Natal, a capela hoje é visitada por devotos de vários pontos do Nordeste, especialmente aos domingos, quando é celebrada uma missa.
O empresário Vicente Alves Flor, 74, do setor de transportes coletivos em Natal, vai todo domingo à capela Nossa Senhora das Candeias, em Cunhaú.
"Peço a Deus e aos mártires que me mostrem os meios para sair das dificuldades", diz.
A missa na capela, rezada pelo padre Jilvam Miguel Pereira, mistura cantos regionais com sucessos do padre Marcelo Rossi. Ele levará uma imagem de Nossa Senhora das Candeias, retirada da capela, hoje para a cerimônia no Vaticano.

Colonos
O segundo massacre teve como vítimas colonos que não tinham ido à fatídica missa em Cunhaú, por causa de uma forte chuva, e que haviam se abrigado em Potengi, a alguns quilômetros de Cunhaú. Rabe teria sabido e ordenado um ataque.
Em 3 de outubro de 1645, cerca de 80 prisioneiros, incluindo 12 influentes moradores de Natal, foram mortos pelos índios.
Não existe nenhum vestígio físico do segundo massacre. O provável local fica em uma fazenda, um lugar árido, cercado por carnaubeiras, no município de São Gonçalo do Amarante (a 12 km de Natal).
O dono da fazenda, Roberto da Nóbrega, doou à Igreja Católica um pedaço de terra de seis hectares para a construção de um monumento aos mortos. Antes, serão feitas escavações arqueológicas na área. Fiéis solitários visitam o local nos finais de semana.
O tema só foi remexido na década de 30 deste século, quando foi realizado um congresso eucarístico paroquial na capela de Cunhaú, em homenagem aos 300 anos do episódio.
Até a década de 90, o assunto caiu novamente em relativo esquecimento. Apenas historiadores se dedicaram a estudos e publicações neste período.
Para que os devotos possam acompanhar a missa de beatificação dos mártires, a Igreja Católica instalou um telão diante da matriz de Canguaretama e da catedral em Natal. A TV católica Rede Vida irá transmitir o evento.


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