São Paulo, domingo, 05 de março de 2000


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MINISTÉRIO PÚBLICO
Procurador-geral, que deixa o cargo na quarta, afirma que instituição entra em "caminho sem volta"
Procuradores estão em paz, diz Marrey

"Custou muita luta para que a Constituição não seja um monumento à hipocrisia" "Acho que essa marca de um Ministério Público mais ativo é bastante perceptível"

LYDIA MEDEIROS
da Reportagem Local

Na Quarta-Feira de Cinzas, o procurador-geral de Justiça de São Paulo, Luiz Antonio Marrey, deixa o cargo que ocupou nos últimos quatro anos certo de que contribuiu para pacificar o Ministério Público. Acredita que a instituição amadureceu e hoje os candidatos a sua vaga vivem tranquilo debate eleitoral, sem traço do confronto do passado.
Aos 44 anos, 20 de carreira, Marrey afirma que o Ministério Público nunca foi tão atuante e independente. Diz manter relações profissionais com o governo Mário Covas, que o nomeou duas vezes para a função. "Não fechamos os olhos, não tapamos os ouvidos", afirma.
O procurador não poupa críticas à Lei da Mordaça (que proíbe que autoridades divulguem informações sobre processos em andamento que violem o sigilo legal, a imagem e a honra das pessoas), segundo ele uma retaliação de parte da elite brasileira interessada em enfraquecer o Ministério Público. "Pessoas que estavam acima do bem e do mal foram levadas aos tribunais".
Ao sucessor, Marrey não dá conselhos. Limita-se a dizer que a função não é a de um líder sindical, mas de um representante da sociedade paulista.

Folha - Candidatos à sua vaga afirmam que o Ministério Público vive momentos de agrura com a questão salarial. É verdade?
Luiz Antonio Marrey -
Eu acho que essa palavra "agrura" é muito forte. Acho que o Ministério Público vive momentos de preocupação com a questão salarial. Seus membros são integrantes da classe média, estão há cinco anos sem reajuste e a cidade de São Paulo é a mais cara do Brasil. Claro que isso reflete no cotidiano das pessoas. Sobe o preço da escola dos filhos, sobe o preço do seguro-saúde e o preço de todos os custos da classe média. E os promotores não são diferentes.

Folha - Os salários do Ministério Público são baixos?
Marrey -
Eu considero que nas faixas iniciais da carreira eles estão apertados. O promotor substituto ganha salário bruto de aproximadamente R$ 3.600, um líquido de aproximadamente R$ 2.600. Não é compatível a comparação com o profissional que seja júnior numa empresa porque, na verdade, o promotor substituto exerce plenamente as atividades de um promotor titular. E é fato que o promotor e o juiz substituto no Estado de São Paulo têm um vencimento que é o penúltimo do Brasil.

Folha - Só ganha do Piauí?
Marrey -
Exatamente.

Folha - Por quê?
Marrey -
Não sei. Os vencimentos estão fixados há muito tempo, não se teve clima até hoje para discutir o assunto. Nos degraus iniciais da carreira os vencimentos oscilam de muito apertados a medianamente apertados. Não desconheço que a sociedade brasileira passa por uma crise de emprego e salário, mas é natural que, dentro de uma certa razoabilidade, esse tema seja debatido.

Folha - Qual é o seu salário?
Marrey -
O bruto é de R$ 11,5 mil e o líquido de R$ 8.000.

Folha - Já está no teto salarial então. O que achou do novo valor fixado?
Marrey -
Vai provocar uma discussão sobre a redutibilidade ou irredutibilidade dos vencimentos daqueles que estão há mais tempo no serviço público. Não acho que um profissional com 35 anos de profissão que ganhe líquido R$ 7.000 ou R$ 8.000 receba um salário ruim. Não é. Não é também um escândalo, um marajá.

Folha - O Ministério Público vai ocupar um novo prédio, reformado por R$ 10 milhões. Era necessária a mudança? Não havia outras prioridades?
Marrey -
Era absolutamente necessária. Estamos no limite do nosso espaço. A mudança, a médio prazo, trará economia, na medida em que vamos deixar de pagar aluguéis de mais de R$ 100 mil. Não temos gabinetes suficientes ainda para todos os procuradores de Justiça, isso vai ser suprido com o novo prédio. Esse prédio que ocupamos será devolvido ao Estado.

Folha - E os órgãos que ocupavam o prédio novo (Secretaria de Viação e Obras e Departamento de Águas e Esgotos)? Vão pagar aluguel?
Marrey -
Isso é um problema do Executivo. Aquele prédio estava notoriamente subocupado e estava destruído por dentro. Me surpreende como havia condições de trabalhar lá. O aspecto era horroroso, carpete velho, mofado, sem escada de incêndio, inseguro. A reforma foi quase a reconstrução de um prédio de 30 mil metros quadrados.

Folha - Eleições anteriores, inclusive quando o senhor foi escolhido, foram mais politizadas. Agora o Ministério Público parece voltar-se mais para assuntos internos, como remuneração e equipamentos. O que mudou?
Marrey -
São vários os temas da campanha. Há preocupações com a melhoria de condições de trabalho. Avançamos, por exemplo, em informatização, mas não o suficiente. Mas é óbvio que as preocupações não são só salário e aparelhamento. Discute-se também modelos de atuação do Ministério Público.

Folha - O Ministério Público é uma instituição pacificada, depois de anos de confronto?
Marrey -
O pluralismo continua a existir. Creio que a instituição está pacificada no sentido de ter amadurecido a possibilidade de fazer um processo eleitoral dentro de termos elevados, com convergências e divergências. E creio que eu contribuí bastante para esse processo de pacificação.

Folha - Os candidatos a seu cargo percorreram o Estado, distribuíram material de campanha. O processo não é caro? O financiamento é apenas interno?
Marrey -
É só interno. Evidente que percorrer o Estado gera despesas, mas há a colaboração de todos. Os candidatos vão no carro de colegas, revezam, um paga a gasolina. Há coleta de contribuições entre os colegas.

Folha - Há prestação de contas? O processo é institucional?
Marrey -
Não, é particular. Cada um faz a contribuição do jeito que pode, mas é uma coisa necessária, porque na medida em que o colégio eleitoral é composto de todos os membros do Ministério Público, é necessário que os candidatos levem sua palavra pessoalmente ao Estado inteiro. Fiz isso e vejo como é importante.

Folha - O Ministério Público hoje é atuante. Há prefeitos, parlamentares e administradores públicos processados, punidos. A que atribui essa maior visibilidade da instituição?
Marrey -
É um processo de interação entre as expectativas e demandas da sociedade brasileira e o processo de vontade política da própria instituição. Há mais de dez anos a instituição recebeu essa configuração da Constituição e custou muita luta entre os membros do Ministério Público para tornar isso real, para que aquilo não seja somente um monumento à hipocrisia.

Folha - A Lei da Mordaça afeta a atuação do Ministério Público?
Marrey -
Eu acho que é um prejuízo ao interesse público e à causa republicana no Brasil. A Lei da Mordaça vai impedir que o Ministério Público se comunique com seu constituinte, que é a população. Só posso ver interesse na Lei da Mordaça em parcelas das elites brasileiras que sempre foram impunes, que sempre sonharam com um sistema de Justiça criminal que puna as classes populares. Pela primeira vez, nos 500 anos de história do Brasil, estão sendo incomodadas.

Folha - É uma retaliação?
Marrey -
É uma retaliação, sim, e existem outros projetos em andamento querendo cortar atribuições do Ministério Público. Isso vem no bojo de uma campanha que merece nosso repúdio. Não são os membros do Ministério Público que serão prejudicados com a aprovação desses dispositivos. Será a população. O artigo 5º da Constituição diz que a publicidade é a regra geral dos atos oficiais. O sigilo é a absoluta exceção e é condicionado ao efetivo interesse social.

Folha - Há abusos cometidos?
Marrey -
Abusos sempre poderão existir em qualquer atividade humana, mas são mínimos comparados à atividade geral. E há mecanismos hoje aptos à coibição dos abusos. Há a Corregedoria Geral do Ministério Público e posso dizer que a instituição paulista tem tido uma posição muito firme em punir promotores faltosos que, felizmente, são poucos.

Folha - Onde o Ministério Público ainda age timidamente?
Marrey -
A palavra tímida não é adequada. Precisamos evoluir de maneira geral. Temos que aprofundar nossa organização para combater o crime organizado, não obstante tenhamos iniciativas importantes nessa área. De maneira geral, avançamos em praticamente todas as áreas. Mas a demanda da sociedade é muito grande. É necessário que o Ministério Público deixe de funcionar em alguns casos em que não haja interesse público, para, sem ter que agigantar demais seus cargos, dar conta dessas atribuições.

Folha - O Ministério Público teve presença forte no caso da Máfia dos Fiscais. Parlamentares punidos querem reeleger-se. Isso não dá à população a sensação da impunidade?
Marrey -
Não me cabe fazer comentário de natureza político-partidária. Mas é óbvio que quando há pessoas envolvidas, às vezes condenadas, cassadas por práticas de corrupção, seu retorno sem maiores problemas à vida pública pode passar, sim, essa sensação. O Ministério Público paulista elegeu nos últimos quatro anos absoluta prioridade ao combate à corrupção e assim tem feito. Não houve momento da nossa história em que tantas autoridades foram processadas. Inúmeras pessoas que estavam acima do bem e do mal foram levadas aos tribunais, com condenações.

Folha - O senhor acha que cumpriu as metas que havia proposto?
Marrey -
A meta era fazer um Ministério Público profissional, independente, apartidário e aberto à sociedade. Nesses quatro anos, o Ministério Público paulista teve uma marca, a marca da não-omissão. Não fechamos os olhos, não tapamos os ouvidos. Estivemos presentes em todos os dramas da sociedade paulista. Com sucessos e com insucessos. Acho que essa marca de um Ministério Público mais ativo é bastante perceptível.

Folha - O senhor é próximo de pessoas do governo, como o secretário da Segurança, Marco Vinicio Petrelluzzi. Inclusive se declarou impedido de atuar em um processo que o envolvia. Isso compromete a atuação do Ministério Público?
Marrey -
Não sou próximo de pessoas do governo. O secretário é meu amigo pessoal e em relação a ele, especificamente, quando houve uma representação, eu deixei de atuar, como manda a ética processual. Quanto ao resto, minha relação é profissional.

Folha - Quando o senhor assumiu o cargo, em 1996, seus adversários diziam que como não foi o mais votado (ficou em segundo lugar) e mesmo assim o escolhido, ficaria devendo um favor ao governador. O senhor sentiu isso ou em algum momento foi cobrado por isso?
Marrey -
Absolutamente não. Nunca recebi qualquer tipo de cobrança ou pressão. O governador se portou como um homem de bem e o Ministério Público esteve extremamente ativo em muitos casos em relação ao governo. Houve um secretário de Estado em pleno exercício do cargo processado criminalmente por mim. Certamente não houve na história do Ministério Público um período em que se agiu com tanta independência e liberdade.

Folha - O senhor sofre pressões?
Marrey -
Você recebe ponderações, visitas, pleitos dos mais variados. Nunca houve alguém com coragem suficiente para vir me pressionar. Aliás, porque não adiantaria. Recebi até mesmo a visita de um ministro da Justiça (Nelson Jobim), que veio ao gabinete para dizer que o governo federal estava preocupado com a questão do movimento dos sem-terra. E ouviu que o Ministério Público já conhecia a lei.

Folha - É um cargo espinhoso?
Marrey -
É bastante espinhoso, tem muita responsabilidade. Quando alguém vem exercer esse cargo, tem que ter noção de que não se trata de um líder sindical, e sim de um cargo que pertence a toda a sociedade.

Folha - O senhor teve insônias?
Marrey -
Muitas vezes. Mas hoje, felizmente, com o advento da Internet, às 4h da manhã eu tenho o que fazer, ler os jornais com antecedência.

Folha - Qual o momento mais difícil?
Marrey -
Foi o desprazer, o repúdio, a revolta que me causou a descoberta da violação do sigilo do concurso do Ministério Público. Uma instituição destinada a zelar pelos deveres de honestidade e probidade não pode tolerar nos seus quadros a quebra desses deveres. A instituição está dando uma resposta exemplar. Há duas pessoas processadas criminalmente e já há a propositura de ação de perda de cargo em relação a esses procuradores. Uma instituição que tem por obrigação fiscalizar o ato dos outros, apontar o erro dos outros, não pode perder sua autoridade moral. E não perderá sua autoridade moral reagindo com a máxima dureza a infrações praticadas por membros seus.

Folha - Logo agora no final...
Marrey -
Isso significa que aqui talvez tenhamos que andar à beira do precipício todos os dias e ter o suficiente equilíbrio para não cair nele.

Folha - Que conselho dá a seu sucessor?
Marrey -
Todos os candidatos são experientes. Acho que o Ministério Público de São Paulo, pela sua vocação, adotou um caminho sem volta, de ser fiel servidor da sociedade paulista. Um caminho de abertura, de diálogo com a sociedade. Um caminho que repele o corporativismo e tem que deixar claro sua opção cidadã. Só terá sucesso nesse cargo quem se dispuser a manter essa opção. O Ministério Público jamais poderá voltar a se fechar em si mesmo, jamais poderá deixar de defender com clareza os direitos humanos, jamais poderá deixar de ter vigor no combate à corrupção e à violência.


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