São Paulo, domingo, 05 de setembro de 2004

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NO PLANALTO

Réquiem do velho e bom militante petista

JOSIAS DE SOUZA
COLUNISTA DA FOLHA

Não morreram apenas o Partido dos Trabalhadores e os derradeiros resquícios do discurso pseudosocialista. Morreu com eles um personagem emblemático da cena nacional, o militante petista. Foi substituído por um espécime prosaico, o "visitador". Recrutaram-se mais de 4.000 só na cidade de São Paulo.
Contam as sagradas escrituras que foi fulminante a conversão do santo que dá nome ao município governado por Marta Suplicy. O soldado Saulo, contumaz perseguidor de cristãos, cavalgava pela estrada de Damasco quando, subitamente, teve os olhos varados por uma luz fulgente. "Saulo, por que me persegues", disse-lhe a voz divina, vinda do céu. Extasiado, Saulo tornou-se ali mesmo são Paulo, arauto do cristianismo.
Dá-se algo semelhante com o "visitador" do ex-PT. Embora não traga na alma o dogmatismo acrítico do velho militante, converte-se instantaneamente em apóstolo do petismo. À falta de uma voz caída das alturas, deixa-se sensibilizar pelos cifrões. Move-o a fé remunerada.
Esgota-se aqui a analogia herética tomada de empréstimo da Bíblia. Em troca de boa paga, o pregador petista difunde mensagem diferente daquela irradiada por são Paulo. Operando à maneira do vendedor de cosméticos, de porta em porta, o "visitador" petista mercadeja o CEU de Marta Suplicy.
E quanto ao militante tradicional, que foi feito dele? Uma parte se desiludiu. Outra leva envelheceu, criou barriga, constituiu família e foi brigar pelo leite das crianças. Um terceiro grupo se rendeu às prebendas de um Estado aparelhado. Infiltrado em ministérios, repartições e empresas estatais, entrega até 20% do salário ao partido.
Adicionado ao dízimo recolhido de parlamentares do ex-PT, o óbolo compulsório do neofuncionalismo reforça o caixa central do partido em algo como R$ 15 milhões anuais. Um suplemento providencial à cruzada contributiva personificada pelo companheiro-coletor Delúbio Soares, interlocutor voraz de uma plutocracia inebriada com a avenida de oportunidades aberta pelo petismo no poder.
Tudo somado, o ex-PT virou um portento financeiro. Empreende nacionalmente uma abastada campanha. O valor do recheio do cofre petista é segredo que não se conta nem em confessionário. As estimativas mais pessimistas situam o borderô eleitoral da legenda de Lula na casa dos R$ 80 milhões. As mais otimistas alçam o orçamento a valores que superam a extraordinária marca de R$ 100 milhões. Em qualquer hipótese, é coisa sem precedentes.
O sumiço da militância petista trouxe benefício adicional. O Brasil de Lula livrou-se daquela incômoda sensação de que o caldeirão nacional estava em permanente fervura. Antes, convivia-se com a impressão de que o Palácio de Inverno estava prestes a ser invadido. Agora, a política da histeria, em franco desuso, dá lugar a uma pasmaceira inaudita.
Súbito, foram-se as faixas de "Fora fulano de tal" e "Abaixo o FMI". A despeito da sobrevivência do modelo liberal que costumava mobilizar o laboratório petista de convulsões, não há mais passeatas. Minguaram as manifestações de rua. Desapareceram os "dias nacionais de luta" da CUT.
O projeto socialista e a mística revolucionária já haviam sido arquivados há tempos. Mais recentemente, viraram pó também os nobres propósitos moralizadores. Descartou-se o desejo ardente de revogar o passado alheio. Rendido com atraso à lógica internacional, o ex-PT repete a trajetória da esquerda européia.
Para ingressar no clube do poder, o petismo renegou os lemas marxistas que unificavam a militância. Exatamente como fez o Partido Socialista francês, em 1991, puxando um movimento que contagiaria do trabalhismo inglês às esquerdas escandinavas e ibéricas. Muito antes, o Partido Social Democrata alemão renunciara, no congresso de Bad Godesberg, em 1959, aos princípios da economia planificada.
Porém, diferentemente do que se observou no velho continente, produz-se no Brasil um nefasto processo de indiferenciação política. Ao preservar a essência do receituário liberal do tucanato, o petismo reforçou a percepção de que todos os partidos são iguais.
Ao difundir prematuramente os desejos reeleitorais de Lula, o camarada José Dirceu conseguiu piorar as coisas. Evocou a mesma ladainha de perpetuação que, sob FHC, era vocalizada por Sérgio Motta. Aguçou no imaginário do eleitor o sentimento de que são mesmo, como se costuma dizer, farinha do mesmo saco.
Ao servir-se nacionalmente dos bons préstimos do marqueteiro Duda Mendonça, o mesmo que outrora ajudou a eleger Paulo Maluf, o ex-PT adensa a atmosfera de indiferenciação. Sabe-se que sob os figurinos Ives St. Laurent de Marta Suplicy não se esconde um Maluf. Mas em política, mais do que em outras atividades, as aparências envenenam a realidade.
A construção de uma democracia incipiente como a brasileira depende da capacidade do eleitor de distinguir diferenças. Algo que vai se tornando cada vez mais difícil. O discurso pasteurizado da propaganda eleitoral (nada) gratuita e a conversa mole dos "visitadores" de aluguel apenas tonificam a crença de que é tudo a mesma coisa.
De resto, o fausto da campanha municipal do ex-PT antecipa o tilintar das arcas eleitorais da cruzada presidencial de 2006. E a experiência recente demonstra que a abastança monetária é a ante-sala do escândalo político. O brasileiro não perde por esperar.


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