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ARTE & POLÍTICA
No clássico de Glauber, "povo" cai na farra ao lado de figurões do capital
Lula repete "Terra em Transe"
XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL
O candidato da Frente Trabalhista, Ciro Gomes, ex-governador cearense, testemunha da xilogravura da fome e conhecedor
de pelejas de cordel, valeu-se do
"Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade" para tentar carimbar o tucano José Serra como representante do "coisa-ruim", do "ronca-e-fuça", do
"belzebu", entre outros tantos
batismos que o diabo desfruta
no "Grande Sertão: Veredas".
Ciro, do PPS que substitui o
velho PCB, o "Partidão", esqueceu uma lição cara e nostálgica
até mesmo para os ex-comunistas: a tal da dialética. Ou seja: em
se tratando de Glauber Rocha, o
diretor do filme citado, de 1969,
nem o santo é tão santo e muito
menos o dragão é tão feio. Mas o
filme profético destas eleições é
outro: "Terra em Transe"
(1967), do mesmo diretor.
A campanha de Luiz Inácio
Lula da Silva, embora com o filtro da "cosmética da fome"
-expressão da pesquisadora
Ivana Bentes sobre o sertão dócil e folclórico de filmes como
"Central do Brasil"-, copia este em muitos aspectos.
Na farra nacionalista encenada por Glauber, o "povo" cai na
festa ao lado de autoridades, políticos supostamente bons ou
corruptos, barões da indústria,
sindicalistas caricatos, juízes,
acadêmicos, representantes do
clero, doutores, militares de todas as patentes...
Tudo como coube no embornal de "Lulinha Paz e Amor",
com direito até mesmo à cooptação de generais, que fazia parte da plataforma permanente do
discurso do cineasta baiano. O
senador José Sarney, personagem de Glauber no filme "Maranhão 66", também estava lá
-na campanha e simbolicamente em "Terra e Transe".
É um PT que lembra algumas
crenças do PCB antes e durante
o governo João Goulart. Reparem no que diz sobre esta época
o crítico dialético Roberto
Schwarz, no ensaio "Cultura e
Política", escrito ainda em 1970:
"No plano ideológico resultava
uma noção de "povo" apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas
trabalhadoras, o lumpezinato, a
intelligentsia, os magnatas nacionais e o exército", anotou.
Adiante, o próprio Glauber
aparece na mesma escrita de
Schwarz: "O símbolo desta salada está nas grandes festas de então, registradas por Glauber,
onde confraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo,
a diplomacia dos países socialistas, intelectuais do Partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de rigor, outros
em blue jeans".
A diferença da campanha do
PT para as festas delirantes do
filme é que Glauber, na pele do
poeta-político representado por
Jardel Filho, não propõe um novo contrato social, como insistiu
o discurso da chapa "Capital (o
vice José Alencar, do PL mineiro) & Trabalho (o ex-torneiro
mecânico Lula da Silva).
Alencar, aliás, não seria o empresário Julio Fuentes, nacionalista, burguês que se une à esquerda para enfrentar as ameaças comerciais da Companhia
de Explotaciones Internationales? O Brasil de Glauber chama-se Eldorado e já convive com o
drama da crise internacional.
Na campanha petista, o mal-estar possível foi abafado pela
competência da condução dos
acordos e pelo marketing, ressalvando que Duda Mendonça
fez programas mais politizados
-mas na linha "cosmética da
fome"- do que o previsto. No
filme, o poeta-político amordaça a boca do sindicalista, que
prega o poder popular: "Vocês
já imaginaram o povo no poder?" É a previsão da "pororoca
social" de que tratava o presidente João Baptista Figueiredo.
O suspense "glauberiano" do
eventual governo Lula está nesta
pergunta. O novo contrato social pode até ser possível entre
os convertidos a "bons burgueses" e os movimentos sociais,
que ficaram longe da campanha, mas têm líderes, organização e negociadores que podem
complicar, mas guardam afinidades eletivas com o PT.
O difícil de domar e atender é
a demanda do pessoal que tomou, na campanha, a cachaça
envelhecida desde 89, o lumpezinato, que faz parte da fantasia
desorganizada e viu nas barbas
de Lula um d. Sebastião, aquele
que um dia voltará para vingar
seu "povo", como nas profecias
herdadas de Portugal e repetidas nos nossos sertões e favelas.
Aqui, aliás, já emendamos em
outro Glauber, o de "Deus e o
Diabo na Terra do Sol", de 1962.
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