São Paulo, sábado, 05 de outubro de 2002

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ARTE & POLÍTICA

No clássico de Glauber, "povo" cai na farra ao lado de figurões do capital

Lula repete "Terra em Transe"

XICO SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

O candidato da Frente Trabalhista, Ciro Gomes, ex-governador cearense, testemunha da xilogravura da fome e conhecedor de pelejas de cordel, valeu-se do "Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade" para tentar carimbar o tucano José Serra como representante do "coisa-ruim", do "ronca-e-fuça", do "belzebu", entre outros tantos batismos que o diabo desfruta no "Grande Sertão: Veredas".
Ciro, do PPS que substitui o velho PCB, o "Partidão", esqueceu uma lição cara e nostálgica até mesmo para os ex-comunistas: a tal da dialética. Ou seja: em se tratando de Glauber Rocha, o diretor do filme citado, de 1969, nem o santo é tão santo e muito menos o dragão é tão feio. Mas o filme profético destas eleições é outro: "Terra em Transe" (1967), do mesmo diretor.
A campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, embora com o filtro da "cosmética da fome" -expressão da pesquisadora Ivana Bentes sobre o sertão dócil e folclórico de filmes como "Central do Brasil"-, copia este em muitos aspectos.
Na farra nacionalista encenada por Glauber, o "povo" cai na festa ao lado de autoridades, políticos supostamente bons ou corruptos, barões da indústria, sindicalistas caricatos, juízes, acadêmicos, representantes do clero, doutores, militares de todas as patentes...
Tudo como coube no embornal de "Lulinha Paz e Amor", com direito até mesmo à cooptação de generais, que fazia parte da plataforma permanente do discurso do cineasta baiano. O senador José Sarney, personagem de Glauber no filme "Maranhão 66", também estava lá -na campanha e simbolicamente em "Terra e Transe".
É um PT que lembra algumas crenças do PCB antes e durante o governo João Goulart. Reparem no que diz sobre esta época o crítico dialético Roberto Schwarz, no ensaio "Cultura e Política", escrito ainda em 1970: "No plano ideológico resultava uma noção de "povo" apologética e sentimentalizável, que abraçava indistintamente as massas trabalhadoras, o lumpezinato, a intelligentsia, os magnatas nacionais e o exército", anotou.
Adiante, o próprio Glauber aparece na mesma escrita de Schwarz: "O símbolo desta salada está nas grandes festas de então, registradas por Glauber, onde confraternizavam as mulheres do grande capital, o samba, o grande capital ele mesmo, a diplomacia dos países socialistas, intelectuais do Partido, poetas torrenciais, patriotas em geral, uns em traje de rigor, outros em blue jeans".
A diferença da campanha do PT para as festas delirantes do filme é que Glauber, na pele do poeta-político representado por Jardel Filho, não propõe um novo contrato social, como insistiu o discurso da chapa "Capital (o vice José Alencar, do PL mineiro) & Trabalho (o ex-torneiro mecânico Lula da Silva).
Alencar, aliás, não seria o empresário Julio Fuentes, nacionalista, burguês que se une à esquerda para enfrentar as ameaças comerciais da Companhia de Explotaciones Internationales? O Brasil de Glauber chama-se Eldorado e já convive com o drama da crise internacional.
Na campanha petista, o mal-estar possível foi abafado pela competência da condução dos acordos e pelo marketing, ressalvando que Duda Mendonça fez programas mais politizados -mas na linha "cosmética da fome"- do que o previsto. No filme, o poeta-político amordaça a boca do sindicalista, que prega o poder popular: "Vocês já imaginaram o povo no poder?" É a previsão da "pororoca social" de que tratava o presidente João Baptista Figueiredo.
O suspense "glauberiano" do eventual governo Lula está nesta pergunta. O novo contrato social pode até ser possível entre os convertidos a "bons burgueses" e os movimentos sociais, que ficaram longe da campanha, mas têm líderes, organização e negociadores que podem complicar, mas guardam afinidades eletivas com o PT.
O difícil de domar e atender é a demanda do pessoal que tomou, na campanha, a cachaça envelhecida desde 89, o lumpezinato, que faz parte da fantasia desorganizada e viu nas barbas de Lula um d. Sebastião, aquele que um dia voltará para vingar seu "povo", como nas profecias herdadas de Portugal e repetidas nos nossos sertões e favelas. Aqui, aliás, já emendamos em outro Glauber, o de "Deus e o Diabo na Terra do Sol", de 1962.



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